O que levou a Natura (NTCO3) à reestruturação? Desafio de grandes aquisições e gestão são (parte) da resposta

Segundo fontes, a raiz das questões está em uma cultura que colocou a gestão financeira em segundo plano; ações acumulam queda de 45% no ano

Nem as décadas no topo das listas das melhores para investir, consumir e trabalhar sustentaram a imagem da Natura (NTCO3) com o mercado do fim do ano passado para cá. A deterioração do valor foi rápida dos R$ 84 bilhões que a companhia valia há um ano aos R$ 23 bilhões de hoje. As ações acumulam queda de mais de 45% no ano. Em doze meses, derreteram 75%, com tombos acentuados desde que começaram a aparecer os primeiros sinais de que algo não andava bem na operação do grupo. 

Aos alheios a essa cobertura, o anúncio de reestruturação da companhia pode ter parecido repentino. Àqueles que acompanham o mercado de capitais, um ajuste necessário, dado o cenário macroeconômico. Mas fontes ouvidas pelo BP Money garantem que os desafios da Natura são mais profundos. Problemas de gestão do negócio se arrastam há anos, consequências de uma cultura defasada, que tornou a eficiência financeira uma questão secundária na operação.

Hoje especializado em gestão de turnaround e reestruturação, Max Mustrangi foi executivo da Natura entre 1998 e 2002. Nesses quatro anos na companhia, era um dos responsáveis por operações e logística e respondia ao vice-presidente da área. 

Então saído da norte-americana P&G, ele relata um choque entre as culturas corporativas. “Saí de uma empresa focada na gestão financeira para entrar em uma companhia que privilegiava os relacionamentos, por conta do canal de vendas diretas. Isso penetrou a cultura da Natura e afetou a performance”, relatou Mustrangi. 

Dos anos que esteve na empresa, ele se lembra de alguns embates com a dificuldade de implementar uma agenda focada em eficiência e gestão de custos na área. 

Para ele, a visão de negócios da gestão estava correta da porta para fora, mas prejudicava a administração por relegar discussões sobre eficiência para o segundo plano.

Os depoimentos sobre um ambiente que em muito lembra a cultura corporativa que imperava no Brasil até os anos 1990 – antes da era Ambev sob a gestão do 3G Capital – não finda no início dos anos 2000. 

Pessoas ligadas à companhia, que conversaram com a reportagem na condição de anonimato, reforçam a visão de uma empresa ainda hoje avessa a mudanças e ineficiente na gestão administrativa.

Problemas na rotina administrativa da Natura 

Em diferentes setores, a rotina na Natura é de reuniões extensas (com mais de duas horas) e com um número elevado de participantes. Agendas desnecessárias ou pouco resolutivas, segundo os relatos. 

“Processos que deveriam levar poucas horas para resolver podem levar até uma semana para ganhar andamento na companhia”, relatou uma das fontes, que já passou por outras multinacionais. 

A tomada de decisão lenta é fruto de uma gestão centralizada e do envolvimento de variados agentes nos processos. “Mesmo as vice-presidências e as diretorias precisam de autorização para aprovar pautas simples”, disse uma das pessoas à reportagem. 

Outro ponto comum dos relatos é de que falta à companhia uma visão global do negócio, exercício que estaria sob responsabilidade da Natura&Co. Com entraves de gestão das divisões de negócio, investidores têm questionado essa estrutura. Em 2021, a operação da holding custou R$ 550 milhões ao grupo, o equivalente a 1,4% da receita líquida, acima da meta traçada de 0,8% para esses gastos.

A maioria das pessoas que conversaram com o BP Money menciona ainda uma espécie de aversão à inovação na empresa. 

“Existe uma má vontade com quem tenta mudar o jeito como as coisas funcionam lá dentro. No meu caso, quando questionei a estrutura, passaram a dificultar o acesso às informações que eu precisava para conduzir os processos e travaram a agenda das pessoas com as quais eu precisava falar para ter as aprovações necessárias”, relatou uma fonte.

No universo de mais de 35 mil pessoas na Natura, os relatos ouvidos pela reportagem partem de uma visão crítica sobre o ambiente de trabalho, tendo como referência as experiências anteriores desses profissionais. A frustração surgiu diante da passada lenta e da ineficiência na rotina administrativa. 

Uma das pessoas, que ainda está na empresa, conta ter perdido a motivação no trabalho com o excesso de burocracia na sua equipe. “São muitas etapas para a condução de projetos que quase sempre não dão em nada”, disse.

Mustrangi vai além. Ele lembra que, em 1999, foi instaurado um programa de incentivo para executivos da Natura baseado na eleição da empresa nas listas e pesquisas de melhores para se trabalhar. 

“O problema aí é que se fomenta uma cultura em que o ambiente agradável vira o principal objetivo, em detrimento de eficiência. Eu entendo que um bom lugar de trabalho é consequência da boa gestão de negócio, e não um fim por si só”, refletiu. 

Na teleconferência com o mercado para anunciar a reestruturação da Natura, desafio assumido pelo executivo Fabio Barbosa, a companhia reconheceu ter chegado a um impasse.

“A organização foi ficando burocratizada em função da estrutura montada para buscar harmonia entre as marcas. Agora, passou do ponto. Estamos perdendo agilidade, as empresas estão se ressentindo do fato de não conseguir tomar algumas decisões em nível local”, disse o novo CEO da Natura.

Em comunicado divulgado ao mercado, a companhia associa essas questões “a um período de aquisições transformadoras, a complexa integração de seus negócios e processos e a criação de uma visão comum de sustentabilidade”, que teriam levado a Natura à reorganização.

A ideia daqui para frente é aumentar a responsabilidade das empresas Natura, Avon, The Body Shop e Aesop “ao fazer a transição para uma estrutura mais simples da holding.”

A empresa ainda promoveu um troca-troca na gestão. Além do CEO, outras funções como líder de crescimento sustentável e líder de transformação devem ser extintas ou reavaliadas na nova estrutura, segundo a própria Natura. Há um mês, o diretor financeiro Guilherme Castellan assumiu o relacionamento com o mercado, substituindo Viviane Behar de Castro.

Como o problema da Natura ganhou essa proporção?

Não dá para dizer que a Natura é a única no mercado com questões de ineficiência administrativa. Mas o imbróglio tomou proporções preocupantes após a sequência de grandes aquisições seguida, que provocou forte deterioração dos resultados. 

Em uma janela de sete anos, a companhia concluiu as compras das multinacionais Aesop, The Body Shop e Avon, nesta ordem. À conclusão da última compra, em 2020, havia virado a quarta maior empresa de beleza no mundo. 

O custo dessa série de movimentos se provou muito alto. Os processos de integração de operações são complexos por si só, mas, na Natura, as questões de gestão estariam entrando no caminho. 

No primeiro trimestre deste ano, a companhia desembolsou R$ 80,1 milhões com transformação e para captura de sinergias. A margem líquida do grupo ficou negativa em 7,8%, e a margem Ebitda ficou em 6,2%, a segunda menor para um período desde o começo da década – atrás apenas do primeiro trimestre de 2020, quando chegou a 1,9%.

A visão do mercado é que as operações de marcas funcionam como empresas separadas, com pouca sinergia e dependentes de um processo de tomada de decisão centralizado na holding, o que as torna lentas. O próprio segmento de Natura, que sempre performou bem no mercado latino-americano, perdeu fôlego. 

A receita bruta da marca recuou 8% neste primeiro trimestre na comparação com o mesmo período do ano anterior. A holding atribui a desaceleração do segmento à forte base de comparação, mas os indicadores mostram que os problemas vão além. 

Ainda que o grupo tenha crescido seu faturamento oito vezes – saindo de uma receita líquida de R$ 5,5 bilhões em 2011 para R$ 40 bilhões no ano passado -, os indicadores de retenção do caixa não acompanharam. Na última década, as margens do grupo se deterioraram de forma significativa desde as compras das três operações. 

A deterioração das margens na Natura nos últimos dez anos

Logo após a integração da Avon, as despesas operacionais do grupo saltaram 150%, saindo de R$ 9,05 bilhões em 2019 para R$ 22,9 bilhões em 2020. Em dois anos, o avanço foi de 170%. Em gastos gerais e administrativos, o aumento dos custos seguiu a mesma proporção, de R$ 2,4 bilhões para R$ 5,9 bilhões entre 2019 e 2020. Na comparação do ano passado com 2019, o aumento foi de 189%.

A margem líquida anual consolidada da Natura&Co saiu de 14,9% em 2011 para 2,6% em 2021. As quedas são mais acentuadas nos anos que marcam a integração das operações: 2013 (Aesop), 2017 (The Body Shop) e 2020 (Avon).

 

 

*a margem líquida de 2019 no gráfico indica resultado pro-forma com Avon. A aquisição foi concluída em 2020, no entanto.

Paralelamente, a proporção dos gastos operacionais escalaram significativamente, mesmo frente a entrada das novas receitas. A margem de despesas com as áreas administrativas, de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e projetos sobre a receita líquida foi de 12,2%, em 2011, para 15,9% em 2021. Na última década, a margem média antes e após as aquisições saltou 2,7 pontos percentuais. No começo deste ano, alcançou 17,2%.

Já a margem dos custos com operações de vendas, marketing e logística sobre a receita líquida estacionou em um patamar acima dos 40% nos últimos cinco anos. Em 2021, o indicador alcançou 44,4%, alta de 9,4 pontos percentuais na comparação com a margem da operação dez anos atrás, quando o grupo tinha apenas a marca Natura.

“A Natura tem uma gestão de demanda com muita perda, porque as embalagens e a matéria-prima de cada produto são super customizadas. Costumávamos dizer que ou falta ou sobra na operação”, contou Mustrangi. Na leitura do executivo, se a projeção de demanda ficar abaixo da realidade, o produto se torna um “mico” para o caixa. Se a demanda superar a projeção, a empresa enfrenta outro problema: abastecer o mercado em menos tempo e a um custo elevado.

Ainda que a marca represente a maior despesa da operação, Avon tem os resultados com mais perdas. O Ebitda de Natura correspondeu a pouco mais de 10% da receita bruta nos últimos três anos, enquanto o da Avon representou 2%. Há questões sobre o aumento de custos com essa operação, especialmente para reverter as questões de desgaste da marca da Avon. 

Em 2021, os investimentos do grupo em vendas, marketing e logística da Avon subiram 5%. A marca ganhou os holofotes por ter sido a primeira de maquiagem a investir na cota “big”, de R$ 91,9 milhões, para patrocínio do programa BBB, da TV Globo. Embora os dados não tracem uma associação direta do impacto da exposição da marca sobre as vendas, fato é que a receita bruta da marca subiu apenas 2% na base anual. 

Por que a Natura fez tantas aquisições?

Ainda que seja cedo para avaliar a integração de um gigante como Avon, esses processos costumam exigir grandes sacrifícios, de maneira geral. Então por que a Natura&Co emendou tantas compras de ativos grandes e com operações multinacionais?

A leitura que Max Mustrangi faz do processo é de que as primeiras aquisições foram uma ponte da Natura à rede física no início dos anos 2000, período que o canal de vendas diretas estava enfraquecendo, conforme o e-commerce começava a ganhar musculatura. 

Hoje, 78% da receita do grupo ainda depende das vendas de relacionamento, contra 11% do varejo e 11% do online. Mas 50% das compras em todos os canais são habilitadas digitalmente, isto é, feitas via plataforma.

A compra da Avon é um caso à parte, já que o negócio vinha enfrentando dificuldades e tem uma presença digital ínfima, com o online correspondendo a 3,4% do total de vendas (quando foi adquirida, o digital era 1% das vendas). Como uma das principais concorrentes da Natura no Brasil, especialmente no canal de vendas diretas, a aquisição foi uma estratégia de mercado. 

Problemas que se acumulam (em dívida)

A companhia registrou prejuízo líquido de R$ 643,1 milhões no primeiro trimestre deste ano, quatro vezes mais que a perda de R$ 155,2 milhões no mesmo período de 2021. A receita líquida do grupo Natura no período também encolheu, para R$ 8,2 bilhões, queda de 12,7% na base anual.

A única marca que conseguiu aumentar a receita no período foi a Aesop, que faturou R$ 643,1 milhões, alta de 9,6% em reais. Mas o segmento tem a menor participação no bolo do grupo e correspondeu por 7,8% da receita líquida do último período. 

Avon, Natura e The Body Shop, que concentraram, respectivamente, 48,3%, 31,2% e 12,7% da receita, encolheram no primeiro trimestre. Na Avon, com o enxugamento das operações internacionais, a queda foi de 19,1% em reais e de 10,6% em moeda corrente.  

No Brasil, a Natura perdeu participação no mercado em 0,4 ponto percentual em 2021, segundo dados da Euromonitor. A marca segue líder no setor e está 0,6 p.p. acima da presença que tinha no mercado nacional em 2019, mas se vê ameaçada diante da redução de gastos com bens do consumo discricionário.

“O segmento da Natura trazia um conforto aos investidores. Se esse lado tivesse se sustentado, a empresa poderia se aventurar mais no turnaround da Avon, que ainda deve consumir muitos recursos da gestão”, avaliou Bruno Komura, analista da Ouro Preto Investimentos.

As preocupações com o caixa se intensificaram com a piora do cenário macroeconômico. O mercado já estava atento à desaceleração das vendas do principal ativo da empresa (a marca Natura) desde o terceiro trimestre do ano passado, quando o faturamento neste segmento começou a ficar abaixo do ano anterior. 

A posição é mais difícil agora com o desafio da inflação global. O cenário compromete saídas por outros mercados, ou seja, nem mesmo as operações internacionais serviriam de resgate da Natura neste momento. Para piorar: com a alta global dos juros, a dívida da empresa deve crescer.

As despesas financeiras líquidas do grupo no primeiro trimestre de 2022 foram de R$ 386,6 milhões, alta de 69,6% na base anual, o que o grupo atribui a maiores gastos com operações de swap e forward e perdas com variação cambial. 

Ao fim do primeiro trimestre deste ano, a dívida da companhia estava em R$ 7,7  bilhões. Mas 39% desse bolo está em moeda estrangeira: 31% em dólar, e 8% em libra esterlina. Diante da desvalorização cambial e do faturamento altamente concentrado nos mercados da América Latina, especialmente no Brasil, a equação está desbalanceada. 

Com aumento de custos e diante dos desafios de vender mais em um momento que o consumidor está com o bolso menor para gastos com bens não essenciais, o mercado acredita que o índice de alavancagem líquida do grupo deve subir. Para analistas, o índice caminha de 2,13 vezes o Ebitda para chegar em 3 vezes até o fim deste ano. 

“Além disso, a postergação do prazo para o turnaround da Avon para 2024 frustrou o mercado, que esperava ver essa recuperação ainda neste ano e no próximo”, explicou Komura.

Muitas perguntas e poucas respostas

O ativo Avon tem potencial para fazer o turnaround, na avaliação do analista da Ouro Preto Investimentos, e o mercado deu o benefício da dúvida para a Natura diante da complexidade do processo. “Mas isso foi perdido agora porque os investidores estão esperando as empresas apresentarem resultados”, avaliou Komura. 

O tombo poderia ter sido menor, se a Natura tivesse revisto sua postura de afastamento do mercado antes. A companhia nunca priorizou o diálogo com investidores, o que mudou desde que o cenário para negócios começou a se deteriorar. 

“A partir desse momento, era importante acontecer um alinhamento de expectativa e aumentar a proximidade da gestão com o mercado. Aí essa distância da Natura, até então natural, começou a incomodar os investidores”, relatou o analista da Ouro Preto Investimentos. Foi a falta de sinalização da empresa que provocou a frustração nesse nível.

Daqui para frente, especialistas desejam ver a recuperação das marcas no País, onde ainda há espaço para a Natura retomar seus patamares. O processo de integração da Avon também deve ser acompanhado com lupa, especialmente diante dos planos para entrada da marca no mercado asiático. 

“A evolução desses pontos devem ser monitoradas bem de perto, e quanto mais informações sobre o processo, melhor. Veremos se a mudança de comando abrirá espaço para conversa com o management”, disse Komura. 

A equipe da casa de investimentos ainda tem perspectivas para que a Natura possa ser uma boa compra no longo prazo. Por ora, o mercado responde à forma como foi tratado por anos e elevou sua desconfiança sobre o ativo. 

A entrada de Barbosa, com experiência no setor financeiro, e o anúncio de reorganização apontam bons caminhos, mas ainda não são suficientes para convencer totalmente os investidores. A companhia precisa começar a trazer os resultados em que tanto se fala.

Então não veremos muitos investidores voltando a comprar Natura ainda neste ano. A despeito do que aconteceu na última década, a companhia de 53 anos precisa se provar mais uma vez. Por acreditar nessa virada, especialmente com o turnaround da Avon, a Ouro Preto prevê a retomada do fluxo de negociação do papel para o fim de 2023, conforme o grupo mostre estar seguindo na direção certa.