Os compromissos assumidos pelo aplicativo de mensagens Telegram com o Judiciário brasileiro são uma guinada brusca na relação da empresa com instituições democráticas e um avanço importante no combate à desinformação no país e no mundo. A avaliação é compartilhada por especialistas ouvidos pela reportagem.
“A mudança de postura é revolucionária para o Telegram, que não adotava essa atitude [de diálogo com as autoridades]”, afirma Guilherme Forma Klafke, professor e pesquisador no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV-SP.
“Talvez seja uma atitude até para antecipar essas medidas em outros países com mercados significativos para o aplicativo”, segue ele, que cita a Alemanha como um desses locais com “política forte contra discursos de ódio”.
“Para o que o Telegram vinha fazendo, como ele vinha agindo, [a lista de compromissos] parece um giro de 180º”, diz Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, centro de pesquisa nas áreas de direito e de tecnologia.
“Foi algo como: ‘Pronto, agora estamos presentes, vamos resolver, e, além de tudo, adotaremos medidas espontâneas de moderação de conteúdo. Quando a gente olha a natureza dessas promessas e compara com o que tinha na quinta passada, vemos um quadro bem diferente.”
O Telegram foi bloqueado no Brasil por ordem do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, na sexta-feira (18). A decisão atendeu a pedido feito pela Polícia Federal.
Em sua determinação, Moraes apontava que a empresa “descumpriu inúmeras decisões judiciais”, desrespeitava a legislação brasileira e se omitia da responsabilidade de cessar o compartilhamento de notícias fraudulentas e a prática de infrações penais.
Na ocasião, o magistrado determinou que o Telegram indicasse um representante no Brasil, informasse as providências que estava tomando contra a divulgação de fake news pela plataforma e que excluísse publicações em grupo que faz campanha para Bolsonaro, além de suspender o canal de Claudio Lessa, bolsonarista, que é servidor da Câmara dos Deputados.
O ministro revogou a ordem no fim da tarde de domingo (20), liberando novamente o funcionamento e o uso da plataforma no país. Segundo Moraes, a empresa cumpriu as exigências feitas por ele.
Após o pedido de bloqueio, o fundador do Telegram, Pavel Durov, pediu desculpas ao STF e anunciou compromissos para atender às exigências. Entre eles, a empresa afirmou ainda que vai fazer um monitoramento manual dos 100 canais mais populares no país, diariamente.
Ainda segundo o aplicativo, postagens vão poder ser marcadas como “imprecisas”, a partir de parcerias com agências brasileiras de checagem. Quem divulgar fake news não poderá criar novos canais, conforme o Telegram, que também disse que vai atualizar os seus Termos de Serviço.
Brito Cruz, porém, faz uma ressalva. “Promessa é promessa. Agora vamos ter que olhar na prática e monitorar [o cumprimento desses compromissos]. Hoje em dia o Telegram tem muito pouca credibilidade para dizer que vai conseguir cumprir as suas promessas. Até hoje a gente não viu uma disposição comparável aos seus pares na indústria.”
Ele aponta ainda que o trabalho de moderar conteúdo e coibir a propagação de desinformação e discursos de ódio ou de ataque à democracia é “super difícil, um gato e rato”. “Isso tem que ser feito de maneira consistente e equilibrada”, segue o especialista.
“As grandes plataformas [de comunicação] estão há anos montando equipes, aperfeiçoando os seus termos de uso, desenvolvendo mecanismos de inteligência artificial mais rápidos para avaliação de conteúdo. E nenhuma delas conseguiu resolver isso 100%. O Telegram está querendo chegar num patamar de dizer que é parecido com outras empresas. Mas para ele chegar lá, tem que mostrar muito serviço.”
Para Denise Dora, diretora-executiva da ONG Artigo 19, que promove a liberdade de expressão, o episódio define um precedente de compromissos e pode fazer com que o Telegram defina um padrão global de relação com as instituições públicas nos diferentes países em que atua.
“A gente ter vivido essa experiência [de bloqueio do Telegram] nesse fim de semana e ter chegado a esse acordo significa que a situação está resolvida? Não, não está”, aponta ela. “É um papel de regulação das empresas e do estado brasileiro também. Tem que estabelecer regras para que plataformas funcionem, mas não pode censurar o meio de comunicação. É difícil, né? É um fio esticado.”
“O que pode tornar um aplicativo desses um ambiente mais soturno, em que se pode expressar discurso de ódio, é precisamente qual é o compromisso que essa empresa tem com o estado brasileiro e com as regras democráticas”, diz Dora.
Ela reforça que é um “desafio permanente”. “Esse ano [de eleições] todo nós vamos ter situações para ver se [o rol de compromissos] está sendo obedecido”, lembra.
Klafke, da FGV-SP, chama a atenção para o fato de que não é o Telegram em si que é perigoso, mas sim o uso que pode ser feito dele -assim como de outros aplicativos de troca de mensagens.
“A arquitetura do Telegram tem esse formato de broadcast [transmissão para um grande número de pessoas]. O que for de bom no Telegram impactará mais pessoas. O que for de ruim também”, diz.
“Quanto mais eu crio uma arquitetura tecnológica para propagar discursos, disseminar grupos de pessoas… Eu participo do canal que tem 3.000 usuários. Esse tipo de modelo de negócio atrai pessoas. E o efeito colateral dele é atrair pessoas que falam mentiras. E essas mentiras, essa descontextualização, são um problema de usuários, não da arquitetura.”
Ele define três perfis de pessoas que utilizam esses aplicativos de comunicação.
O primeiro são os que as usam de maneira coordenada para praticar coisas ilícitas. “Esse vai cometer crime em qualquer outro aplicativo”, diz.
O segundo tipo são os que procuram por conteúdos sem checagem ou mais alinhados com as próprias convicções. “Nesse ponto, não tem muito o que fazer além educar essas pessoas e combater as pessoas que propagam”, segue Klafke.
E em terceiro estão os “inocentes ou desavisados” que só querem usar a plataforma para se comunicar, mas acabam “esbarrando” nos conteúdos desqualificados, seja no Telegram ou fora dele.
“De certa forma, tento restringir o aplicativo para evitar que o conteúdo chegue a pessoas desavisadas. Mas grupos coordenados vão continuar agindo na internet, e precisamos combatê-los. O grupo que busca esse conteúdo vai continuar indo atrás desse conteúdo. E os desavisados vão ser prejudicados porque eles querem usar o aplicativo para comunicação mas não vão poder. Bloquear o Telegram significa prejudicar aquele grupo que você quer proteger.”
O advogado lembra que o modelo de negócio do Telegram é baseado na privacidade dos usuários. “O problema é que ao se tentar ir contra o usuário, perseguir ele judicialmente, você esbarrava na não colaboração da empresa”, aponta.
Outro ponto ressaltado por Klafke é a própria tecnologia de criptografia de ponta a ponta -usada por outros aplicativos de mensagem para que as mensagens só possam ser decodificadas pelo remetente e pelo destinatário.
“Essa é uma barreira tecnológica para compartilhar mensagens com a Justiça”, afirma. “A gente tem que definir muito bem um critério para dizer que tipo de arquitetura [de software] é legal no Brasil e que tipo é ilegal. Se eu preciso questionar o que um usuário fez, até a criptografia ponta a ponta seria ilegal”.
Brito Cruz vê no embate do Telegram com o Judiciário brasileiro uma “vitrine” para o mundo.
“Pela primeira vez, o Telegram está apontando [para uma cooperação]. É uma das primeiras situações de cooperação com tantas promessas que o Telegram faz. Acho que a comunidade global vai acompanhar de perto o desenvolvimento do caso brasileiro. O que será feito aqui será cobrado acolá”, afirma.
“Isso vai gerar uma expectativa de uma autoridade alemã, francesa ou indiana, por exemplo, pelo cumprimento de medidas semelhantes.”