As constantes acusações do governo de Vladimir Putin de que os EUA estariam usando a Ucrânia como território para testes de armas químicas -algo descrito por Washington como absurdo- chegou ao Conselho de Segurança da ONU, que, a pedido de Moscou, debateu o assunto em sessão nesta sexta-feira (11).
O governo de Joe Biden nega reiteradamente que esteja operando laboratórios de armas biológicas no país e argumenta que o presidente russo usa a denúncia como uma “bandeira falsa”, estratégia na qual o acusador atribuiu ao acusado a responsabilidade de um ataque que ele mesmo cometeu. O ato seguinte é usar essa justificativa para agir com a mesma moeda, numa ação com dispositivos do tipo.
Durante a sessão, a diplomacia russa afirmou possuir documentos que comprovariam a existência de 30 laboratórios nos quais armas biológicas seriam desenvolvidas no território ucraniano, em cidades como a capital Kiev e Odessa, importante área portuária. Neles, estariam sendo armazenados e desenvolvidos patógenos causadores de doenças como cólera e tularemia.
Os espaços também fariam parte de um programa militar introduzido por Kiev com apoio do governo americano, e a ideia seria disseminar os patógenos por meio de hospedeiros como morcegos e aves migratórias, alegou o representante russo na ONU, Vasili Nebenzia.
O diplomata disse que centenas de contêineres do programa de armas químicas foram localizados por agentes russos, muitos perto da fronteira entre os dois países. Ele ainda instou a União Europeia (UE), bloco que a Ucrânia almeja integrar, a agir: “Ao lado de vocês estão laboratórios de teste com armas biológicas que poderiam culminar em uma disseminação descontrolada, como foi com o coronavírus.”
As alegações foram novamente descritas como uma bandeira falsa pelos EUA. Linda Thomas-Greenfield, representante americana na ONU, retrucou que Moscou tenta usar o Conselho de Segurança para legitimar uma alegação infundada e, assim, criar base de sustentação para a ação de Putin na Ucrânia.
“A Rússia tem o histórico de acusar países de cometerem violações que ela mesmo está cometendo”, afirmou. “E acreditamos fortemente que a Rússia, há anos um aliado do regime de Bashar Al-Assad, que usa armas químicas da Síria, também planeja usar armas do tipo na Ucrânia.”
Segundo Greenfield, os EUA têm programas de cooperação com a Ucrânia na área da saúde, mas para avançar na capacidade de detecção de doenças, como é o caso da Covid, preocupante no país.
A representante dos EUA sustentou-se na chancela dada pelas Nações Unidas. Já na abertura da reunião, Izumi Nakamitsu, subsecretária-geral da ONU para assuntos de desarmamento, disse que a organização não tem conhecimento de nenhum programa de armas químicas e biológicas em andamento na Ucrânia.
Pesquisa, produção e armazenamento de dispositivos do tipo são proibidos desde 1972 pela Convenção de Armas Biológicas, tratado assinado por 183 nações desde então -Rússia e Ucrânia fazem parte do pacto. A convenção tem dispositivos próprios para que países-membros apontem preocupação sobre o desenvolvimento de armas biológicas por outros membros, mas foram pouco usados até aqui.
Nakamitsu, descartando a acusação russa, destacou estar “seriamente preocupada” com a situação das usinas nucleares de Tchernóbil e Zaporíjia, a maior da Europa, tomadas por tropas russas. “Qualquer acidente envolvendo as usinas teria consequências sérias para a população e o ambiente. É preciso que aqueles no controle das estruturas assegurem sua manutenção e operação segura.”
Outras preocupações humanitárias foram destacadas na sessão, com as Nações Unidas atualizando os números da guerra. Os dados mais recentes apontam que ao menos 564 civis morreram no conflito e 26 estabelecimentos de saúde foram atacados, levando à morte de 12 pessoas. Mais de mil foram feridos.
A ONU disse ainda ter evidências do uso de bombas de fragmentação pela Rússia, artefatos projetados para que, ao serem detonados sobre a terra, fragmentem-se em pequenas bombas que se dispersam numa ampla zona onde permanecem ativas de forma permanente. Organizações humanitárias como a Cruz Vermelha começaram a enviar equipes extras para ajudar a população a retirar as armas do território.
Países como França, Noruega e Reino Unido rechaçaram as alegações. Assim como os EUA, disseram que os argumentos e a convocação da reunião tinham como único propósito distrair a comunidade internacional dos ataques russos na Ucrânia, já na terceira semana.
O Brasil, membro rotativo do Conselho de Segurança, vinha subindo o tom contra ação russa, mas não condenou as alegações. O diplomata João Genésio de Almeida Filho usou a fala para criticar o uso de armas biológicas e afirmar que os mecanismos da convenção de 1972 precisam ser fortalecidos. “O Brasil acredita que toda acusação de produção ou uso de armas biológicas é preocupante e deve ser apresentada com informações sólidas.”
A sessão também repetiu a fórmula observada desde o início da guerra: China, Índia e Emirados Árabes Unidos, aliados da Rússia em fóruns diplomáticos e dependentes em armamentos, limitaram-se a dizer que condenam o uso de armas biológicas. A China, aliás, subiu o tom em relação aos EUA. Disse receber com preocupação as informações apresentadas pela diplomacia russa e criticou os EUA, que, disse o representante chinês, Zhang Jun, teriam mais de 300 laboratórios de armas biológicas pelo mundo.
Pequim também saudou a reunião entre os chanceleres russo, Serguei Lavrov, e ucraniano, Dmitro Kuleba, na Turquia, nesta quinta. A conversa não teve qualquer resultado prático, no entanto. Zhang Jun, porém, disse vê-la como mais um passo positivo para alcançar a paz.
Ainda que a Ucrânia não seja membro do conselho, o órgão convidou o país a enviar um representante para a reunião. Sergi Kislitsia disse lamentar que o espaço fosse usado por Moscou para manipulação e, negando brevemente a posse de armas químicas, usou a fala para listar o caos humanitário.
Ponto sensível foi o ataque a uma maternidade na quarta (9), que, segundo autoridades do país, deixou três mortos e 17 feridos. Nebenzia, o representante russo, voltou a negar a autoria russa do ataque. Disse que a foto de uma mulher grávida ferida na ocasião, que estampou páginas de diferentes jornais, era falsa.
Em resposta, Kislitsia mostrou uma foto da mulher que, disse, chama-se Mariana. Ela teria dado à luz na noite de quinta. A criança, Verônica, estaria bem. O diplomata aproveitou para pedir ajuda internacional.