RIO DE JANEIRO, RJ, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma proposta de reforma sindical encomendada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) legaliza o locaute e limita o poder da Justiça do Trabalho. As mudanças alteram a estrutura do sindicalismo no Brasil.
A ideia, de acordo com texto formulado por especialistas, é promover ampla liberdade e fortalecer a negociação, além de autorizar sindicato por empresa. Já sindicalistas fazem críticas e veem esvaziamento das entidades.
Hoje, o locaute –espécie de greve de empresas– é proibido. Pelo instrumento, em vez de os trabalhadores, são os empresários que interrompem deliberadamente as atividades.
Além disso, a Justiça do Trabalho, por meio do chamado poder normativo, põe fim a conflitos, quando solicitado por ambas as partes, e pode definir direitos, como reajuste salarial, gratificações e vales, o que seria proibido sem negociação. O magistrado poderia apenas declarar se a greve ou o locaute é abusivo.
Para sindicalistas, o locaute pode ser usado como ferramenta de pressão. Segundo eles, há suspeitas, por exemplo, de que empresários do setor dos transportes encorajem paralisações de motoristas para obter ganhos, seja com mais subsídio público, seja com reajuste do preço cobrado nas tarifas.
“Vai institucionalizar o lobby para reajuste de contratos”, diz Miguel Torres, presidente da Força Sindical.
Durante o governo Michel Temer (MDB), em 2018, houve suspeita de locaute na greve dos caminhoneiros. Na ocasião, o país viveu intensa crise de desabastecimento.
As sugestões foram levadas ao Ministério do Trabalho e da Previdência. O material foi produzido pelo Gaet (Grupo de Altos Estudos do Trabalho), a pedido da pasta, para subsidiar também uma reforma trabalhista.
Entre as sugestões estão a liberação do trabalho aos domingos e a proibição de reconhecimento de vínculo de emprego entre prestadores de serviço e aplicativos.
A pasta, no documento, diz que as medidas não representam o posicionamento do governo. O ministério afirma que atuará em diálogo com a sociedade.
O subgrupo coordenado pelo professor da FEA-USP Hélio Zylberstajn debate a liberdade sindical. “A propósito, nesse novo modelo é recomendável admitir o locaute”, diz o relatório.
Por meio de uma PEC (proposta de emenda à Constituição), o artigo 9º passaria a prever que “são assegurados os direitos de greve e de locaute, competindo aos trabalhadores e às empresas decidir sobre os interesses a serem defendidos e a oportunidade de seu exercício”. Hoje, a Constituição admite a greve.
Zylberstajn afirma à reportagem que se deve avaliar cada detalhe do relatório no conjunto das sugestões feitas. “A proposta, se adotada, daria espaço para a autorregulação, ou seja, plena negociação”, diz.
Integrante da comissão, o advogado e professor de direito do trabalho da USP Nelson Mannrich afirma que se busca “paridade de armas”. “Se o empregado tem uma arma [greve], o empregador tem o direito de ter a mesma arma [locaute].”
De acordo com ele, esse não é o eixo central da proposta. “Não tendo a liberdade sindical, pode ter tudo, pode ter locaute, pode não ter. Isso tudo é perfumaria.” Segundo Mannrich, sobre os pleitos dos empresários, seria necessária uma regulação por meio de lei infraconstitucional. “Não existe direito absoluto.”
No meio jurídico, há resistência. Professor de direito do trabalho da USP e sócio do escritório Siqueira Castro, Otavio Pinto e Silva critica a proposta. “Em vez de promover a negociação coletiva, o locaute acaba por sufocá-la.”
Segundo Silva, a greve, como último instrumento, busca o atendimento de uma reivindicação, quando frustrada a negociação. “Mas o locaute viria com qual objetivo?”
Para especialistas, pode haver questionamento da constitucionalidade da regra.
Ricardo Patah, presidente da UGT (União Geral dos Trabalhadores), diz que o locaute terá como efeito a satisfação do interesse empresarial. “Não advém do interesse do trabalhador, mas de pressão política muito forte”, afirma.
O subgrupo de Zylberstajn propõe ainda mudanças no artigo 114 da Constituição. O dispositivo trata de competência –ou seja, quando e sobre o que um magistrado pode decidir–, proibindo o poder normativo.
Hoje, os trabalhadores recorrem à Justiça quando se sentem lesados pelo empregador e contam com uma resposta por meio de sentença.
Segundo a proposta, o ramo trabalhista poderia processar e julgar “ações que envolvam abusividade no exercício do direito de greve e locaute, sendo vedada a estipulação de cláusulas sociais e econômicas”.
Essa sugestão dialoga com PEC sugerida pela comissão coordenada pelo ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, ex-presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho). “?
O grupo de Gandra defende que empregadores e empregados poderão, em conflito coletivo, eleger um magistrado ou um órgão colegiado de tribunal como árbitro. A comissão não defende o locaute.
A proposta diz que “caberá à Justiça do Trabalho tão somente apreciar sua legalidade [da greve] e adotar as medidas judiciais cabíveis para que sejam respeitados os percentuais mínimos de trabalhadores em atividade, para o atendimento às necessidades inadiáveis da população”.
À reportagem, Gandra explica que, com a mudança, haverá só arbitragem. “A própria Justiça do Trabalho seria o árbitro, em comum acordo entre as partes. O juiz é escolhido. Tem gente que tem o dom da conciliação, tem gente que não”, diz. O que o árbitro decidir, segundo Gandra, vale como regra.
Segundo Guilherme Feliciano, juiz e professor de direito do trabalho da USP, existe “fixação dos ultraliberais” no tema. “Extinguem o poder normativo ao mesmo tempo em que enfraquecem os sindicatos”, diz.
“Neste momento, imaginar que apenas a arbitragem resolva os conflitos coletivos é, no mínimo, temerário.”
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) também se opõe à medida. Para o presidente da entidade, Luiz Antonio Colussi, a ferramenta pacifica relações coletivas.
“O poder normativo é um instrumento importante, impondo às partes a solução adequada aos dissídios coletivos. Hoje a Justiça do Trabalho consegue resolvê-los”, afirma o juiz.
O relatório propõe ainda o fim da chamada unicidade sindical –ou seja, um único sindicato por categoria em uma base territorial. Seria também permitida filiação a mais de uma entidade. O registro seria feito apenas em cartório civil.
A proposta de sindicato por empresas é atacada por Colussi. “A ideia inicial de negociar por empresa enfraquece o poder da categoria, e a empresa vai negociar com grupo menor”, diz o magistrado.
Diante das sugestões, o secretário-geral da Força Sindical, João Carlos Gonçalves, critica a composição do Gaet. “O governo propôs apenas especialistas ligados aos empresários ou com opiniões empresariais. [Não há] nenhum representante dos trabalhadores”, diz.
Para ele, a gestão Bolsonaro se aproveita da fragilidade dos trabalhadores por causa do desemprego. “O governo dificulta o financiamento das entidades sindicais, diminuindo o poder de mobilização.”
Não há prazo para que a avaliação do relatório seja concluída.