Futuro do Auxílio Brasil será definido com precatórios

Relator espera PEC dos Precatórios para definir futuro do Auxílio Brasil

A MP (medida provisória) que acaba com o Bolsa Família e institui o Auxílio Brasil em seu lugar, além de encerrar um programa com mais de 18 anos de existência e tido como sucesso internacional, deixa em aberto vários pontos considerados essenciais, que devem ser esclarecidos pelo parecer do relator na Câmara.

A MP não define valores e prazos para o novo benefício. O texto apenas dá a entender que o Auxílio Brasil vai ser uma política permanente. Segundo fontes, desde o início, a intenção do relator era deixar claro que se trata de um benefício definitivo.

O governo quer aumentar o número de famílias atendidas, de mais de 14 milhões para 17 milhões, criar nove benefícios complementares e garantir um valor mínimo de R$ 400 até o fim de 2022. Mas o Planalto ainda depende da aprovação da PEC dos Precatórios para sustentar tanto o aumento do benefício como o do número de contemplados.

“Na questão orçamentária, onde está o grande pepino, a gente estava trabalhando com um valor de R$ 60 bilhões para o novo programa social -saindo dos R$ 34,7 bilhões do Bolsa Família”, diz o relator do projeto, o deputado federal Marcelo Aro (PP-MG).

Após uma declaração do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), de que ninguém receberia menos de R$ 400 com o Auxílio Brasil, a conversa entre o relator e o governo mudou.

“Para que nenhuma família receba menos de R$ 400, o tíquete-médio do programa seria aumentado de R$ 189 para R$ 450 ou R$ 500, e o orçamento iria para R$ 85 bilhões. O problema é de onde tirar esse dinheiro. O governo não foi capaz de responder isso e começou a levantar as alternativas de colocá-lo fora do teto de gastos e que fosse um auxílio temporário.”

O próprio relator chegou a definir a MP que muda toda a dinâmica da assistência social no país como uma carta de boas intenções, sem detalhes de como será operacionalizada na prática.

Sem uma definição objetiva de valores para o novo programa, seria preciso esperar uma adequação futura do governo, via decreto, ou que o relator já defina os valores de benefícios em seu parecer.

“Sou contrário ao benefício temporário. Isso acaba não sendo um programa de Estado, mas um projeto pensando na próxima eleição. Quem tem a vida modificada com um benefício de um ano?”, questiona Aro.

Como a MP fala que o programa ainda tem de ser regulamentado, não é possível ter certeza, baseado no texto do governo, quanto será garantido às famílias de baixa renda –e por quanto tempo.

A depender do avanço da PEC dos Precatórios e das novas discussões entre os ministérios e o relator, existe a possibilidade de que o parecer retire parte das decisões das mãos do governo, já fixando no texto as garantias para além de 2022.

“Tudo depende de como vai caminhar a PEC dos Precatórios. Se ela for aprovada, vou sentar com os ministérios da Economia e da Cidadania para negociar se nós faremos todas as mudanças ou se eles vão mandar outra medida provisória para contemplar o auxílio temporário, enquanto eu cuido do programa permanente”, diz o deputado.

Na semana passada, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (sem partido-RJ) entrou com um pedido no STF (Supremo Tribunal Federal) para suspender a tramitação da PEC.

Existe também a possibilidade de o relator nem entrar na discussão orçamentária e fazer apenas as modificações programáticas, o que facilitaria a tramitação do texto.

Outro temor é que o novo programa centralize decisões na esfera federal e tire de municípios o poder de chegar até as famílias de menor renda. Segundo o deputado, o papel dos municípios na execução do novo programa deve ser reforçado no parecer.

O cadastro do Bolsa Família geralmente é feito pelo Cras (Centro de Referência de Assistência Social), considerado uma porta de entrada do Suas (Sistema Único de Assistência Social).

As famílias procuram esses centros no município onde moram, levam os documentos necessários e abre-se um cadastro em que a sua situação financeira vai ser avaliada. Para o Auxílio Brasil, o parecer deve manter as condições para ingresso e cadastro do Bolsa Família, que funcionam bem, diz Aro.

A ideia é que os inscritos no Bolsa Família também tenham conversão automática para o novo programa, e qualquer cláusula de transição, para ajustes, ainda precisa ser definida.

Na última sexta-feira (5), o presidente Bolsonaro editou um decreto modificando os valores das faixas de extrema pobreza (de R$ 89 para R$ 100) e pobreza (de R$ 178 para R$ 200).

Segundo a Secretaria Geral, do Palácio do Planalto, os valores serão considerados já para o pagamento no dia 17 de novembro do programa social.

Nesse ponto, o parecer deve ir além do que o governo propôs, modificando as faixas de extrema pobreza e de pobreza para R$ 105 e R$ 210, respectivamente.

Outra ideia é que os reajustes passem a ser compulsórios, corrigidos pela inflação aferida no IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo).

GOVERNO FAZ ‘LEILÃO POLÍTICO’, DIZ ESPECIALISTA

“É um cenário muito preocupante, o Auxílio Brasil deveria ser um Bolsa Família fortalecido, que teria de começar a funcionar ainda em novembro”, diz Jefferson Nascimento, da Oxfam. “Já estamos em novembro e a única coisa que sabemos é que as famílias devem ficar sem o Auxílio Emergencial e sem o Bolsa Família, enquanto o governo está desmontando a estrutura de dados do Cadastro Único.”

Com a substituição do programa, deixam de existir os benefícios principais do Bolsa Família: o básico, o variável vinculado à criança, o vinculado à nutriz, o vinculado à gestante e o vinculado ao adolescente.

No lugar, ficariam três modalidades principais: primeira infância, composição familiar e superação da extrema pobreza (que já existe e será mantida). Além disso, o governo propôs benefícios extras: auxílio esporte, bolsa de iniciação científica, auxílio à criança cidadã, inclusão produtiva rural e inclusão produtiva urbana e um benefício compensatório de transição.

“É um leilão político, em que o que importa é se o tíquete que o governo vai ofertar aos mais pobres é de R$ 400 ou R$ 300 e quantas pessoas serão beneficiadas”, diz Marcos Mendes, ex-assessor especial do antigo Ministério da Fazenda.

Segundo o economista, a proposta do governo tem várias fragilidades e inconsistências. “Estão recriando, em partes, o Fome Zero. O programa de inclusão produtiva para quem conseguir emprego formal já existe, é o Abono Salarial. O governo está pensando em uma porta de saída para o Auxílio, mas precisa apresentar as condições para que o cidadão saia e eventualmente volte ao programa”, afirma Mendes.

Para Vinícius Botelho, ex-secretário de Avaliação e Gestão da Informação nos Ministérios do Desenvolvimento Social e da Cidadania, outra questão que se coloca é que a ausência de crescimento econômico torna muito difícil o debate sobre a emancipação da pobreza.

Nas últimas semanas, analistas e bancos já revisaram suas previsões para o PIB (Produto Interno Bruto) do ano que vem, com expectativas de queda ou de estagflação.

Botelho avalia que faria mais sentido que as propostas feitas para o Auxílio Brasil fossem programas separados, apresentados de forma sequencial, para que se pudesse ter tempo de entender quais são os resultados esperados de cada medida, o número de pessoas envolvidas e os valores de benefícios.

O economista lembra que o Bolsa Família também surgiu da fusão de outros programas, só que de uma forma mais estruturada.

“A possibilidade de o benefício maior terminar no fim de 2022 traz incerteza para o substituto de um programa que ajudou a eliminar 3 pontos percentuais da pobreza.”

O professor do Insper Otto Nagami diz que o governo busca apresentar alguma medida aos eleitores para o ano que vem, especialmente aqueles de renda mais baixa, que mais sofrem com os atuais problemas na economia, como desemprego e inflação. Ele está aproveitando que o valor do benefício do Bolsa Família já estava defasado, uma vez que o próprio governo Bolsonaro ignorou esse problema até então.

“A substituição pelo Auxílio Brasil é uma maneira de apagar a marca de governos petistas, só que agora com uma ‘data de vencimento’ para um valor significativamente maior”, diz ele.

Os analistas ouvidos pela Folha de S.Paulo lembram que o país vai continuar precisando de programas de transferência de renda depois de 2022, e que assegurar o benefício mais robusto apenas até o fim do ano que vem coloca muitas das famílias mais pobres, novamente, em uma montanha-russa de renda.

Em um intervalo de menos de dois anos, elas sentiram o baque da pandemia, experimentaram um Auxílio Emergencial de R$ 600, tiveram o benefício cortado e depois reduzido, devem ter o novo Bolsa Família turbinado até o fim de 2022 e depois voltam à incerteza.

A grande preocupação é que o governo não tem recursos para manter o benefício prometido, acrescenta Botelho, o que exigirá novo remanejamento orçamentário ou um aumento da carga tributária lá na frente.