VILA RESTAURAÇÃO, AC (FOLHAPRESS) – Na comunidade ribeirinha de Vila Restauração, no meio da floresta amazônica do Acre, fazer gelo é uma grande novidade. Em setembro deste ano, os moradores passaram a ter acesso contínuo à energia elétrica pela primeira vez -e congelar água é só um dos hábitos recém-adquiridos.
Localizada na Reserva Extrativista do Alto Juruá, a vila está quase na fronteira com o Peru, a 557 km da capital Rio Branco. O trajeto até o município mais próximo é feito apenas de barco -e pode demorar até oito horas dependendo das condições do rio.
Num dos lugares mais remotos do Brasil, energia elétrica sempre foi a exceção. Mas um projeto do Grupo Energisa, maior empresa de capital nacional do setor, permitiu que a comunidade tivesse acesso à eletricidade 24 horas por dia.
A companhia instalou uma usina solar para atender aos 750 moradores da vila, que antes dependiam de um único gerador a diesel.
Além de poluente e barulhento, o gerador era suficiente para apenas três horas e meia de energia por dia, o que impedia a comunidade de ter coisas tão triviais quanto gelo, como lembra Igor Nobre, 25.
Nascido na Vila Restauração, ele é piloto de canoa e diz ter vivido 25 anos praticamente sem energia nenhuma. Seg
Igor conta que sua esposa decidiu abrir um salão de beleza para atender às mulheres da vila. “Ela é cabeleireira agora que a energia chegou. Antes não tinha como, na hora do gerador, a tomada não aguentava ligar um secador ou uma chapinha.”
A instalação da usina solar pela Energisa foi concluída em setembro deste ano. O projeto custou R$ 20 milhões e foi feito com recursos dos programas de pesquisa e desenvolvimento da companhia, que são regulados pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
A unidade de Vila Restauração tem potência de 325 kWp (quilowatts-pico) e é equipada com 580 painéis fotovoltaicos, baterias de lítio para armazenar o excedente de energia e dois geradores -movidos a diesel ou biodiesel- para situações críticas.
De acordo com Ricardo Botelho, presidente Energisa, o projeto indica um caminho possível para um dos grandes desafios do setor elétrico: conectar pequenas comunidades no meio da floresta amazônica.
Dados de uma análise feita pelo Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente) mostram que mais de 990 mil brasileiros vivem sem acesso à energia elétrica pública na Amazônia Legal.
“Nessas comunidades bem isoladas, não justifica, em grande maioria, construir uma linha de distribuição até eles. Por isso, nós começamos a examinar alternativas tecnológicas e ambientalmente adequadas para resolver essa questão”, disse.
Segundo Botelho, a escolha de um local tão complexo de ser acessado foi proposital. “Nós queríamos avaliar todas as condições, talvez até as mais difíceis, para testar essa tecnologia.”
A maior parte dos equipamentos, como placas solares, baterias e conversores, saiu de caminhão de Uberlândia (MG) até Cruzeiro do Sul (AC), de onde seguiram de balsa até a comunidade.
O deslocamento levava, em média, 13 dias, seis na estrada e sete nos rios. Uma placa na entrada da usina resume a saga: mais de 10.000 km de transporte fluvial foram feitos.
Menos de dois meses após a conclusão da obra, o resultado parece ter agradado à empresa e aos moradores.
Para o subprefeito de Vila Restauração, Eládio Furtado, 47, a chegada da usina solar ajudou a tirar um peso de cima dos ombros. Além das dificuldades inerentes à escassez energética, ele diz que arrecadar o dinheiro para comprar o diesel era uma batalha.
O gerador consumia 1.700 litros do combustível por mês, sendo que 1.000 litros eram fornecidos pela prefeitura de Marechal Thaumaturgo (o município mais próximo), e os outros 700 eram divididos pela comunidade.
O preço cobrado variava. Alguns moradores pagavam quase R$ 60 por mês para ter três horas de energia diárias. Hoje o valor médio da fatura gira em torno de R$ 30
“Quem tinha só luz em casa pagava mais barato. Para quem tinha televisão, geladeira, bomba de puxar água [do poço artesiano], ficava mais caro”, afirma.
Antônio Francisco Barros, 36, conhecido como Babau, era um dos responsáveis por ligar o gerador à noite. O horário era sempre o mesmo: das 18h às 21h30. “Às vezes eu deixava passar até cinco, dez minutos, mas não era o certo, né?”, comenta.
Babau mora na vila há 17 anos e, atualmente, é funcionário da subprefeitura. No entanto, esse é apenas um dos trabalhos que ele faz.
Entre os moradores, ele é mais conhecido por ser o narrador oficial das partidas de futebol que acontecem aos domingos no estádio da Samaúma, o campo da comunidade.
Babau narra freneticamente, ao estilo locutor de rádio, e a chegada da energia também facilitou as coisas para ele, que agora não precisa mais comprar gasolina para abastecer o gerador portátil que alimentava sua caixa de som.
Energia elétrica traz impacto social Para José Adriano Mendes Silva, diretor presidente da Energisa Acre, o projeto feito na Vila Restauração vai além da instalação de uma usina solar. Segundo ele, a iniciativa é sobretudo de sustentabilidade e integração da comunidade.
“Até alguns meses atrás, essas pessoas tinham um muro na frente delas e não conseguiam olhar para fora, em função das limitações do local onde moram. Elas não tinham acesso à energia elétrica, ao mundo e às informações”, afirma.
Após a chegada da energia na vila, a Energisa também está estudando formas de viabilizar outros serviços aos moradores. Uma parceria com a TIM levou internet e telefone para a comunidade. Agora o foco é o saneamento básico e o abastecimento de água.
Para isso, a empresa encomendou um projeto executivo que será entregue às lideranças políticas locais, o que, segundo Botelho, pode facilitar a captação de recursos.
Outra iniciativa que a companhia está desenvolvendo é em relação ao consumo consciente. Além de estimular o uso de aparelhos durante o dia, quando há geração de energia solar, a Energisa trocou lâmpadas, refrigeradores e freezers de moradores por eletrodomésticos mais eficientes, a fim de diminuir o desperdício.
De acordo com Botelho, o projeto na Vila Restauração até se encaixa na agenda ESG (sigla para boas práticas ambientais, sociais e de governança) da companhia, mas não foi essa a motivação.
“A gente não falou ‘temos que carimbar isso aqui com o selo ESG’. Fizemos porque precisava ser feito. É uma demanda, é algo que a gente acha importante”, diz.
Raimundo Nogueira da Silva, 72, que o diga. Conhecido como seu Camurça, ele chegou na vila há 15 anos, quando nem gerador a comunidade tinha -só lamparina.
“Ninguém esperava um lugar desses, no meio da mata, ter uma energia de qualidade. É uma benção que a gente nunca imaginava”, comenta.
Com a instalação da usina, seu Camurça pôde ter sua primeira geladeira e agora não vê motivo para morar em outro lugar. “Se me derem casa em Cruzeiro do Sul, eu não vou. Eu acho tão bom aqui.”
Descarbonização da Amazônia Além de levar energia elétrica a regiões isoladas no meio da Amazônia, a Energisa está promovendo, em parceria com o MME (Ministério de Minas e Energia) e a Aneel, o desligamento de termelétricas que não estavam conectadas ao sistema integrado do país.
O programa teve início em 2019 e a previsão é que, até 2025, a empresa desative 19 usinas, sendo 13 em Rondônia, cinco no Acre e uma no Pará. O total do investimento é de R$ 1,2 bilhão.
No Acre, uma das principais metas é eliminar a geração termelétrica de Cruzeiro do Sul até 2025. O município é o segundo maior do estado e consome quase 100 mil litros de óleo diesel por dia.
“Nosso objetivo é levar sustentabilidade e energia ao estado do Acre, contribuindo para o seu desenvolvimento social, e logicamente, o desenvolvimento econômico que está atrelado a isso”, afirma Silva, diretor presidente da Energisa Acre.
O repórter viajou a convite da Energisa.