Trabalho escravo, exploração de mão de obra infantil, falta de diversidade. Esses são alguns dos problemas que costumam estar no rastro do agronegócio brasileiro.
Segundo especialistas, o setor ainda enfrenta sérios desafios sociais, mas tem conseguido superá-los, especialmente com a pressão da agenda ESG, que preconiza boas práticas ambientais, sociais e de governança corporativa.
Para a advogada Juliana Ramalho, sócia do escritório Mattos Filho, o agronegócio tem desafios em cada um dos três pilares ESG, mas a questão social tende a ser complicada pela dificuldade que as empresas têm em mensurar suas iniciativas.
“O social é a relação com os diferentes stakeholders [públicos com quem a companhia se relaciona]. Quando falamos do agro, existe o desafio com o próprio empregado, com a comunidade, com o fornecedor e com os clientes”, afirma.
Na visão dela, um dos principais pontos de atenção deveria ser a cadeia de suprimentos, que tem sido alvo de questionamentos.
“Muitas vezes, não é possível fazer uma auditoria em todos os tiers [níveis]. Uma das coisas mais importantes é estabelecer regras claras em relação a trabalho analago escravidão e trabalho infantil”, diz.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tinha, em 2019, quase 1,8 milhão de crianças condição de trabalho infantil.
Desse total, mais da metade (51,6%) estavam nos setores de agricultura (24,2%) ou comércio (27,4%). Cerca de 41% estavam empregados em outras atividades, enquanto o restante (7,1%) se encaixava nos serviços domésticos.
No mundo, o setor agrícola é responsável por 70% das crianças e dos adolescentes em situação de trabalho infantil, como mostrou um relatório de 2021 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e da Unicef.
Segundo Mauricio Moraes, sócio e líder de agronegócio na PwC Brasil, problemas trabalhistas têm sido cada vez mais raros no setor.
“As empresas estão conseguindo melhorar as condições de trabalho, mas o agro é muito pulverizado. É difícil administrar 100% das situações e, quando acontece um caso, gera um ruído muito grande. É uma preocupação que o setor tem e deve continuar trabalhando para evitar, mas eu diria que reduziu muito”, afirma.
Ele diz que a extensão territorial do Brasil, a pobreza em determinados locais e a própria estrutura do agronegócio no país fazem com que seja difícil monitorar e acabar definitivamente com esses problemas.
Em relação ao trabalho escravo, Moraes entende se tratar de uma pequena exceção. “Ainda existe, mas o setor é muito afetado por notícias ruins. Quando se fala nesses temas, eles são muito críticos. Apesar de serem poucos casos, é grave”, afirma.
De acordo com o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, iniciativa do Ministério Público do Trabalho e da OIT, mais de 55 mil pessoas foram encontradas em condições análogas à escravidão no Brasil entre 1995 e 2020.
Segundo a plataforma, mais de 80% dos resgates aconteceram no setor agropecuário, que é o segmento econômico mais envolvido com o problema.
Marcello Brito, presidente da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), discorda que o agronegócio brasileiro esteja relacionado a questões como trabalho escravo e exploração de mão de obra infantil.
“Quando a gente olha, por exemplo, o trabalho análogo à escravidão, a sociedade dá muita pouca visão ao trabalho urbano”, diz.
“Eu acho que existe trabalho análogo à escravidão, existe invasão de terra, existe uma série de coisas provocadas por bandidos, criminosos. Quando a sociedade, e a imprensa, insiste em não taxar esses [indivíduos] de criminosos, tenta dar uma igualdade entre os brasileiros que trabalham honestamente e aqueles que infringem a lei no dia a dia”, acrescenta.
Segundo o presidente da Abag, o problema existe e deve ser combatido pela sociedade a todo custo, mas não cabe ao agronegócio ser um fiscal do cumprimento legal brasileiro. “Isso é função do governo federal e dos governos estaduais.”
Contudo, Brito afirma que o setor pode sim ajudar nesse combate. “Para uma empresa se considerar em compliance com o ESG, ela terá que olhar toda a cadeia anterior a sua produção. Não cabe à ela o poder de polícia, mas é obrigação checar a sua cadeia de suprimentos”, diz.
É o que procura fazer a FS, empresa produtora de etanol à partir do milho, e que também atua nas áreas de nutrição animal e bioenergia.
A companhia rastreia todos os territórios de onde compra insumos, verificando problemas como desmatamento, sobreposição de áreas protegidas, invasão de terras indígenas e regiões quilombolas.
Segundo Rafael Abud, diretor-executivo da FS, o sistema também monitora bases de dados públicas sobre inscrições em listas de trabalho escravo e problemas trabalhistas. Caso seja identificada alguma situação irregular, a companhia não dá continuidade ao negócio.
“Além do básico, que é ter todas as cláusulas contratuais que não permitem esses problemas, a gente busca uma verificação ativa”, diz.
A análise socioambiental se aplica a toda cadeia de valor, desde os fornecedores de insumos até os próprios clientes.
“O mundo, no geral, tem a ideia de que o cliente é soberano, mas adotamos uma postura diferente. A gente não quer ser vetor de incentivo para um produtor que, através do nosso produto, viabiliza uma atividade numa área em que ele não deveria estar viabilizando” afirma Abud.
A FS também tem metas públicas relacionadas ao pilar social do ESG. Uma delas é ter 70% dos funcionários contratados das comunidades onde a empresa está inserida, nos municípios de Lucas do Rio Verde e Sorriso, ambas em Mato Grosso.
Outra é relacionada à inclusão. A companhia pretende atingir, até 2030, pelo menos 30% de mulheres e 40% de pessoas negras em posições de liderança.
Diversidade e inclusão são desafios que o agronegócio brasileiro ainda enfrenta. Segundo Mauricio Moraes, da PwC, o setor tem um histórico de ser predominantemente masculino, mas isso é algo que vem mudando.
“O agro tem muita tecnologia empregada e, quando isso ocorre, não estamos mais falando daquela mão de obra bruta. Hoje, praticamente toda a cana é mecanizada. Então, não há motivo para não termos operadores de máquinas do sexo feminino, pessoas que analizam dados etc.”, diz.
Para ele, é preciso que o ESG faça parte do propósito da companhia. “A questão é isso estar na estratégia e permear as decisões. Leva um tempo para isso acontecer, mas é totalmente possível mudar”, afirma.
Juliana Ramalho, advogada do Mattos Filho, lembra que o pilar social também abrange outros temas, que vão além das meras obrigações de uma empresa.
“Quando a gente fala em ESG, estamos falando de beyond compliance [além do compliance]. Existe a legislação trabalhista, mas para além disso existem outras boas práticas a serem consideradas, como saúde mental. Não está escrito em lugar nenhum da legislação, mas é imprescindível”, diz.