Foi um retorno muito superior ao garantido no mercado financeiro que atraiu o motorista Gentil Nunes a investir R$ 15 mil em julho deste ano na empresa de Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como “faraó dos bitcoins”, preso no mês passado.
O dinheiro foi o que restou da diferença entre a venda do apartamento em que morava na zona sul do Rio de Janeiro e a compra de outro menor, em razão da crise econômica.
“Tive que sair [do apartamento em que morava] por questões financeiras. Fui para um apartamento menor para segurar a grana. Foi quando eu falei que, já que está acabando [o dinheiro], preciso de algum rendimento para viver. Foi quando outros amigos entraram no negócio e me chamaram”, disse Gentil.
O motorista é um dos 11 clientes da GAS Consultoria que já pediram à Justiça do Rio de Janeiro, em cinco cidades diferentes, o bloqueio de bens da empresa. O grupo inclui servidor público, professora, militar, advogados e empresários com investimentos que vão dos R$ 15 mil de Gentil até R$ 460 mil de um aposentado.
Todos foram atraídos pela promessa de 10% de retorno mensal sobre o aporte inicial por um período de dois anos a partir de investimentos em criptomoedas. Pelas regras do contrato, o valor investido não poderia ser sacado até o fim do prazo.
Eles temem que um eventual bloqueio de bens da empresa retenha tanto o valor aportado como interrompa os retornos prometidos. Até o momento, os clientes afirmam que a empresa está em dia com seus compromissos.
A Justiça Federal entendeu que o modelo de investimento tem características de uma “pirâmide financeira”, na qual os novos clientes garantem o pagamento dos antigos. O esquema gera prejuízos quando a entrada de recursos não atende mais às necessidades de saídas.
Glaidson foi preso na Operação Kryptos sob suspeita de gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira clandestina, emissão ilegal de valores mobiliários sem registro prévio, organização criminosa e lavagem de capitais. Outras oito pessoas foram alvos de mandado de prisão.
A defesa do empresário nega irregularidades e afirma que ele atua de forma regular no mercado de criptomoedas. A empresa diz que está funcionando normalmente e a rotina de pagamentos “continua sólida”.
Gentil trabalhava como motorista no setor de turismo, um dos mais afetados desde o início da pandemia do novo coronavírus. Passou a trabalhar com aplicativos e serviços esporádicos, com uma redução significativa na renda quando decidiu entrar no mercado de criptomoedas através da GAS Consultoria.
“Esté é um rendimento importante para mim. A gente está com medo de que seja bloqueado e a gente perca tudo”, disse ele.
A propaganda boca a boca é um relato comum entre os clientes da empresa de Glaidson. A origem da indicação foi o que chamou a atenção de João Roberto de Oliveira, advogado de Itaboraí que investiu R$ 60 mil na empresa.
“Recebi a indicação de algumas pessoas, empresários que não caem em conto do vigário. Conheci a sede deles em São Francisco, em Niterói. Conheci o gerente. Tudo demonstrou muita seriedade”, disse o advogado.
“Teve gente que refinanciou a casa em 25 anos para colocar dinheiro lá”, contou Oliveira, que foi o primeiro a conseguir uma decisão favorável pelo bloqueio de bens da empresa, no dia seguinte à prisão de Glaidson.
Outra que conseguiu o bloqueio de bens foi uma professora de Cabo Frio, cidade-sede da GAS Consultoria, que investiu R$ 20 mil.
O advogado Ary Alves Junior, que representa quatro clientes da empresa de Glaidson, afirma que não há relatos de atraso no pagamento dos valores acertados em contrato.
“A empresa continua pagando. As pessoas ainda não sabem se é golpe ou não. Se [a empresa] vai quebrar ou não”, disse ele.
Junior representa um aposentado cujo investimento é, até o momento, o maior já apresentado na Justiça: R$ 460 mil. Atua ainda em favor de um casal de empresários que investiu, junto, R$ 270 mil e uma servidora pública que aportou R$ 195 mil no negócio.
Também consta como cliente da GAS Consultoria o ex-superintendente do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro, Jonas Roza. Ele fez 143 depósitos que somam R$ 1,9 milhão, segundo relatório do Coaf enviado à CPI da Covid. Ele afirmou que os valores estão errados, mas que só responderia sobre o caso à Justiça.
A prisão de Glaidson gerou uma série de protestos de clientes da empresa em cidades da região dos Lagos, onde fica Cabo Frio, e até na capital. Em todas elas, os manifestantes criticam a prisão do empresário, a quem defendem com ardor.
Um dos atos foi realizado em frente à sede da TV Globo, que revelou as investigações semanas antes da Operação Kryptos, em que Glaidson foi preso. Nele, os manifestantes gritaram pelo nome da repórter Lívia Torres, uma das responsáveis pelas matérias sobre o caso.
A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) classificou a menção à repórter na manifestação como uma ameaça.
“Essas ameaças são represália a matérias jornalísticas sobre o mecanismo denominado pirâmide, no qual um grande número de pessoas foi lesado. O episódio é gravíssimo e exige providências imediatas das autoridades, identificando e levando à Justiça os responsáveis”, afirmou a entidade.
Ligações interceptadas com autorização da Justiça mostram que Glaidson orientou um segurança de sua empresa a prender jornalistas que fossem à empresa questionar sobre a atuação.
“Você tem que fazer reunião com esses caras e falar assim: ‘Olha, é ordem do Glaidson, chegou aqui repórter… É pra pegar, pra amarrar’. E eu vou decidir o que vai fazer. Não vai fazer nada, só vai segurar. (…) Bateu repórter aí no escritório, é pra pegar! Segura! Toma celular, toma câmera, apaga tudo, e fica com o negócio na mão, com celular e com a câmera na mão… E me liga!”, disse ele.
Glaidson trabalhou como garçom de um restaurante em Cabo Frio (RJ) até 2015, quando fundou a empresa.
Neste período de seis anos, a movimentação financeira dele e suas empresas somaram R$ 38 bilhões, segundo relatório do Coaf.
A PF apreendeu R$ 14 milhões em dinheiro vivo e R$ 150 milhões em bitcoins no dia da prisão do empresário.
A GAS estava na mira da PF desde abril, quando uma denúncia anônima levou os federais a Búzios (RJ), onde foram encontrados R$ 7 milhões armazenados em malas e que seriam levados para São Paulo de helicóptero. Os valores eram transportados por uma casal que se identificou como funcionários da GAS.
Desde o ano passado, porém, alguns bancos encerraram unilateralmente as contas da GAS Consultaria em razão das movimentações financeiras suspeitas. A empresa conseguiu liminares na Justiça para manter ativas algumas dessas contas.
Rotina de pagamentos continua sólida, diz empresa A GAS Consultoria afirmou, em nota, que a rotina de pagamentos aos seus clientes “continua sólida, exatamente como planejada”.
“Não há comprometimento algum dos contratos da empresa. No universo de milhares de contratos, a G.A.S. Consultoria entende aceitável, embora anormal, a desistência de algumas pessoas. Contudo, não há embasamento legal algum que justifique quebra de qualquer contrato”, diz a empresa, em nota.
A firma nega atuar como “pirâmide financeira”, como apontou a Justiça, porque atua há “aproximadamente uma década no mercado” e por não ter uma política de estímulo de indicação de novos clientes, característico desse esquema.
“O negócio entre a G.A.S. Consultoria e seus clientes é garantido por contrato registrado em cartório e com promissória de pagamentos assinados pelos representantes legais da empresa”, diz a nota.