Estética da dureza

O culto à dor está matando a performance

Confundimos sofrimento com competência, e insistimos em associar a dor à evolução, como se o corpo humano respondesse apenas à força de vontade e não à fisiologia

Bernardo Tillman, Triatleta e ultramaratonista
Bernardo Tillman, Triatleta e ultramaratonista

Em algum momento entre a popularização do Instagram fitness, a explosão das planilhas em aplicativos e a glamourização da “rotina de guerra”, o triathlon deixou de ser um esporte de estratégia e passou a ser tratado como um culto à dor. O mantra é conhecido: acordar às 4h, treinar 20 horas por semana, ignorar dor, não escutar o corpo, “fazer o que precisa ser feito”.

Essa estética da dureza, esse elogio da exaustão, virou moeda social. Quem treina cansado é mais dedicado. Quem sangra no pedal é mais comprometido. Quem não descansa é mais forte. E aí está o problema: confundimos sofrimento com competência, e insistimos em associar a dor à evolução, como se o corpo humano respondesse apenas à força de vontade e não à fisiologia, ao contexto e à inteligência do processo.

Posso dizer com clareza: o excesso de sofrimento deliberado, hoje, é uma das principais causas de estagnação, lesão e frustração esportiva. E se continuarmos tratando o desconforto como objetivo (e não como subproduto eventual), vamos formar cada vez menos atletas e mais ex-atletas.

Em treinamento sério, a dor constante não é medalha: é alerta. Dor persistente não é sinal de raça, mas de erro estrutural: na periodização, na técnica, na carga, na recuperação ou na cabeça.

A performance de verdade acontece em ciclos planejados, progressivos e responsivos. Ela nasce no equilíbrio fino entre estímulo e assimilação, não no grito. Um atleta que termina todos os treinos “no osso” não está sendo disciplinado. Está sendo mal orientado ou está viciado em punição.

Porque sim: existe vício em sofrimento. A mente responde ao estresse extremo com descargas bioquímicas que geram uma falsa sensação de controle e superação. A exposição crônica à dor pode se tornar um padrão de identidade. E muitos atletas seguem se punindo, repetidamente, não para evoluir, mas para se sentir merecedores de alguma coisa que nem sabem mais o que é.

O culto à dor também criou uma armadilha sutil: a superidentificação com a persona de atleta extremo. Aquela figura que sempre “faz mais”, que nunca recua, que não perde treino nem doente. O problema é que essa identidade cobra um preço alto: ela não permite espaço para dúvida, para ajuste, para pausa. Ela exige uma perfeição sacrificante e, frequentemente, destrutiva.

Atletas amadores que vivem em dupla jornada (trabalho e treinos) estão entre os mais afetados por esse modelo. O corpo avisa, mas a cabeça ignora. O treinador prescreve leve, o atleta acelera. O plano é adaptado, mas o ego insiste. E, eventualmente, o colapso chega: lesão, perda de libido, insônia, irritabilidade, overtraining leve crônico ou o abandono completo do esporte.

Disciplina, em alto rendimento, não é seguir um plano com rigidez militar. É ter lucidez para adaptar o plano com critério, escutando o corpo e respeitando os princípios fisiológicos. A famosa “resiliência” não é continuar a qualquer custo, é saber parar antes do colapso. É ter margem para sustentar performance ao longo do tempo, não em um ciclo heróico que termina em estafa.

A ideia de que o atleta “tem que sofrer” para evoluir é uma simplificação preguiçosa de uma ciência complexa. O treinamento não é linear, nem mecânico. Existem dias em que o corpo precisa ser estressado. Mas existem semanas inteiras em que o segredo da evolução é tirar o pé, dormir mais, comer melhor e voltar a sentir prazer em treinar. Sem isso, não há supercompensação.

Treinar exige desconforto, mas não sofrimento crônico. O desconforto está presente no estímulo intenso, na quebra de padrão, no esforço técnico. Já o sofrimento, quando constante, está atrelado à disfunção: falta de sono, dor persistente, esgotamento emocional, rigidez mental.

O triathlon é um esporte lindo. Técnico, exigente, estratégico. Mas se ele continuar sendo promovido como um ritual masoquista, vai perder relevância. Porque atletas sérios não querem se provar o tempo inteiro. Eles querem evoluir. Querem consistência, saúde, clareza, longevidade.

O futuro do treinamento está em proteger a performance da cultura da exaustão, não em alimentá-la. Está em formar atletas que performam em alto nível sem se machucar, sem se punir, sem se perder.

Enquanto formos cúmplices da ideia de que quem sofre mais vence mais, continuaremos construindo cicatrizes em vez de resultados.

*Bernardo Tillman é fundador da assessoria esportiva Tribus Adventure. É profissional de Educação Física especialista em Fisiologia do Exercício, com ampla experiência em treinamento esportivo. Triatleta e ultramaratonista com participações em Ironman, XTERRA e Ultraman. Foco em performance, treinamento outdoor e alto rendimento.