O Brasil que financia o próprio crescimento
Foto: Gerada por IA

O crédito é a força invisível que move a economia brasileira, e sua origem e distribuição revelam mais sobre o país do que as estatísticas tradicionais costumam mostrar.

O Brasil é notoriamente complexo quando o assunto é crédito, seja bancário ou não bancário, direto ou indireto.

Nas últimas décadas, o desenvolvimento do crédito no país prosperou ancorado em inovação e diversificação do setor de meios de pagamento e do mercado financeiro. Porém, como toda “empresa” que cresce aceleradamente, essa evolução veio acompanhada de desafios, em especial, a dificuldade de tratar todo crédito como crédito, reconhecendo onde ele de fato existe, mesmo fora do molde tradicional de concessão.

O chamado crédito indireto é o melhor exemplo desta revolução silenciosa. Ele se expande com velocidade e assume diferentes formas e canais.

Instituições enquadradas nas categorias regulatórias S4 e S5 do Banco Central, que incluem instituições de pagamento, cooperativas e financeiras de menor porte, passaram a operar de forma ativa em modelos B2B2C e B2B2B, criando centenas de “bancos  white-label” dentro de empresas comuns que controlam o canal e a oferta do crédito na ponta.

Paralelamente, o crédito também circula na rotina do consumidor embutido na experiência de compra. Está no parcelamento sem juros, no preço final e nos arranjos criados por empresas que descobriram que financiar é vender, e vender é financiar. É uma engrenagem discreta, mas vital para sustentar o consumo e a demanda no país.

Alguns números ajudam a ilustrar essa dinâmica. O estoque total de crédito no Sistema Financeiro Nacional atingiu R$ 6,8 trilhões em agosto de 2025, segundo o Banco Central, com crescimento anual acima de dois dígitos nas últimas leituras.

O crédito livre, mesmo com oscilações pontuais, segue firme, impulsionado por frentes como o avanço do consignado privado que, embora ainda distante do objetivo de baratear o crédito na ponta, amplia o acesso com menor risco e o crescimento contínuo das carteiras do setor público, ancoradas em baixas taxas de inadimplência. 

Ao mesmo tempo, a retomada dos financiamentos de veículos, estimulada por linhas promocionais, digitalização e maior presença de players alternativos, somada à expansão das operações de desconto de duplicatas e recebíveis, tema cada vez mais quente no mercado B2B, também contribui para o avanço geral do crédito.

Colocando uma lupa ainda maior sobre a diversificação, estima-se que cerca de R$ 1 trilhão desta carteira já esteja fora do circuito tradicional dos grandes bancos, nas mãos destas instituições menores e, por consequência, de seus clientes.

No setor de pagamentos, a ABECS aponta que mais de R$ 1,5 trilhão foi transacionado em cartões de crédito em 2025, sendo aproximadamente R$ 700 bilhões em parcelados sem juros. Ou seja, quase metade do crédito no cartão não aparece como crédito formal. O consumidor está acostumado a olhar apenas a parcela, não o contrato, nem a taxa, mas há fomento econômico, junto ao risco, inadimplência e impacto sobre a renda.

Essa “zona cinzenta” entre o crédito formal e as estruturas alternativas também ganhou atenção no campo jurídico e regulatório. Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal, com base na Resolução CMN nº 4.858/2020, decidiu que operações como forfait e confirming, conhecidas como “risco sacado”, não configuram crédito bancário em sentido estrito, e sim operações de risco comercial, fora do escopo da regulação prudencial bancária tradicional.

Enquanto isso, o Executivo segue outro caminho, por outro motivo. O Ministério da Fazenda, por meio do ministro Fernando Haddad, anunciou que a Receita Federal passará a enquadrar fintechs como instituições financeiras, após investigações apontarem o uso de estruturas paralelas por organizações criminosas.

Esse contraste revela um dilema evidente: como fortalecer governança e compliance sem sufocar o mercado descentralizado que se tornou vital para o crédito nacional? A resposta não está apenas em mais regulação, mas em um novo entendimento de compliance como ativo estratégico.

O compliance, quando visto como capital, não trava o crescimento, e sim acelera. Ele permite funding mais sólido, acesso a parcerias e dá credibilidade, que é, no fim, a moeda de maior valor em qualquer sistema financeiro. 

O novo mapa do crédito brasileiro é descentralizado, dinâmico e inevitavelmente mais complexo. Mas isso não é uma distorção, e sim um reflexo do crescimento e da própria maturidade do sistema. A capacidade de gerar liquidez e financiar o consumo está espalhada pela economia real, alcançando varejistas, fintechs, cooperativas e empresas que hoje funcionam não só como extensões de acesso ao crédito, mas como provocadores deste crescimento. 

O Brasil, no fim das contas, financia o consumo em escala massiva, e esse modelo é aderente às suas próprias urgências e serve a um país plural, com realidades distintas e necessidades fragmentadas.

Justamente por isso, o papel do Estado não é apertar o cerco sem planejamento, mas garantir que essa nova força encontre direção, eficiência e transparência junto àqueles que a criaram, consolidando-se como parte vital no ecossistema do crédito brasileiro. 

O spread do poder mudou de endereço e hoje mora na economia real.

Lucas Dornellas

Colunista

Profissional com mais de 15 anos no setor financeiro e de meios de pagamento, CRO da RPE, liderando vendas, marketing, receitas e customer success. Especialista em geração de receita e inteligência de mercado, com passagens por Pinbank, Dotz, Niky e CashU. Formação em Business Economics (USP) e cursos em Estratégia (Harvard) e Negócios Sustentáveis (Wharton).

Profissional com mais de 15 anos no setor financeiro e de meios de pagamento, CRO da RPE, liderando vendas, marketing, receitas e customer success. Especialista em geração de receita e inteligência de mercado, com passagens por Pinbank, Dotz, Niky e CashU. Formação em Business Economics (USP) e cursos em Estratégia (Harvard) e Negócios Sustentáveis (Wharton).