Ping-pong com Jaqueline Kist

‘Mudança de tom do BC reforça credibilidade', avalia sócia da Matriz Capital

"O Copom citou o risco de uma desancoragem mais prolongada nas expectativas, que traz em si mesmo um viés de alta inflacionária", disse

Jaqueline Kist/Reprodução
Jaqueline Kist/Reprodução

A recente mudança de tom do Banco Central do Brasil em relação à possibilidade de aumento da Selic foi lida com acerto no comprometimento da autarquia monetária da manutenção da qualidade técnica. É o que aponta a especialista em mercado de capitais e sócia da Matriz Capital, Jaqueline Kist, em entrevista ao BP Money.

Depois que a ata da última reunião enfatizou que o Copom (Comitê de Política Monetária) estaria disposto a aumentar os juros se necessário, dirigentes do BC (Banco Central) começaram a expressar maior preocupação com o panorama atual da inflação em suas falas recentes. 

As declarações de Galípolo se destacaram no mercado, especialmente porque ele é considerado o principal candidato para assumir a presidência da instituição no próximo ano.

“O Comitê citou na última ata também outros dois riscos altistas para a inflação: uma resiliência na inflação de serviços que pode perdurar com as expectativas deterioradas e, adicionalmente, o risco cambial”, explicou a especialista.

Confira a entrevista na íntegra

Como você avalia a recente mudança de tom do Banco Central do Brasil em relação à possibilidade de aumentar a Selic?

Penso que a mudança de tom do Banco Central vem em linha com uma necessidade por parte do Comitê de Política Monetária de manter sua credibilidade técnica, especialmente frente a um cenário de desancoragem das expectativas de inflação (vemos as projeções do Focus com IPCA projetado acima das metas de inflação até 2026, alteração que vimos desde o início de junho). Parte dessa desancoragem pode ser explicada pelo receio do mercado em relação a intervenções políticas no trabalho do Banco Central, tendo em vista que essa alta mais acentuada nas projeções de IPCA no horizonte relevante do Focus vêm desde a reunião de maio do Copom em que tivemos o dissenso na decisão.

Além do risco da desancoragem mais prolongada nas expectativas, que traz em si mesmo um viés de alta inflacionária, o Comitê citou na última ata também outros dois riscos altistas para a inflação: uma resiliência na inflação de serviços que pode perdurar com as expectativas deterioradas e, adicionalmente, o risco cambial. Um período mais prolongado de real mais depreciado tem impacto nos preços de importação e, consequentemente, risco de alta para a inflação.

Com essa preocupação cambial adicionada, o comitê sinalizou que o balanço de riscos para inflação passou a ser assimétrico: três fatores de risco de alta vs dois fatores de baixa. Os fatores de baixa são relacionados à uma desaceleração mais acentuada do que o projetado na atividade econômica global e impactos mais fortes que o esperado do aperto monetário na desinflação global. Nesse novo contexto, as projeções de inflação do Banco Central, tanto no cenário base (queda de juros), quanto no cenário alternativo (manutenção da Selic em 10,5% por mais tempo) tiveram ajustes permanecendo acima da meta de inflação dentro do horizonte relevante (até 2026), em linha com o projetado no Boletim Focus.

Temos, portanto, de um lado: atividade econômica aquecida, níveis baixos de desemprego e aumento das expectativas de inflação e das projeções de inflação do Banco Central, e inflação de julho divulgada já demonstrando os impactos do dólar forte e demanda aquecida, atingindo 4,5% no acumulado de 12 meses. De outro: risco de recessão nos EUA como um impacto na demanda global, afetando nossos níveis de exportação e efeitos alternativos de um cenário de desaceleração econômica. 

O Copom nos traz que em sua visão, tendo em vista riscos maiores de alta e impactos já observados na trajetória desinflacionária, uma postura mais cautelosa é necessária para observar os dados dos próximos meses. Sem indicar de fato uma alta, o Comitê nos mostra que ela não está descartada em um cenário em que a depreciação do real persista, mas com um risco de recessão também no radar.

Temos um viés de alta nas projeções para a Selic em 2025. O que está motivando essa expectativa?

Nas últimas duas semanas vimos que as projeções da Selic terminal em 2025 no relatório Focus passaram de 9,5 para 9,75. Esse cenário não espera uma alta nos juros por parte do Copom, mas uma redução na possibilidade de cortes no ano, indicando uma expectativa por maior aperto monetário ao longo do próximo ano. 

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A mudança no viés do balanço de riscos para a inflação é um claro motivador dessa alteração nas expectativas. O Copom nos dá como cenário alternativo de suas projeções a manutenção da Selic nos patamares de 10,5% e, na última ata, mesmo esse cenário implica uma inflação acima da meta no horizonte relevante – considerando as projeções atuais de câmbio e a depreciação do real.

Em sua opinião, quais seriam os impactos de uma eventual elevação da Selic no cenário econômico atual?

Uma nova elevação da Selic significa maior dificuldade no acesso ao crédito – isso é verdade para as pessoas físicas mas, principalmente, para as empresas. Um custo de financiamento mais alto impacta as projeções e os resultados das empresas, de forma que o efeito final seja o controle da inflação com um impacto na capacidade de oferta por parte das empresas e na demanda com um custo mais caro de crédito na ponta do consumidor.

Portanto, a tendência é que o impacto seja positivo na inflação (em termos de desaceleração da trajetória inflacionária para convergência à meta), e negativo no crescimento econômico – a intenção é justamente a contração econômica para controle de inflação.

Temos, entretanto, um cenário global de início de desaceleração nos Estados Unidos, crescimento abaixo do esperado na China – ambos consumidores relevantes da nossa oferta de exportação – de forma que o controle da inflação pode vir por outros fatores, externos inclusive, não dependendo somente da política monetária para tal. 

São esses movimentos que o Comitê observará de perto nos próximos meses para guiar suas decisões, deixando o cenário em aberto. A sinalização de que a alta é uma possibilidade no radar é importante  do ponto de vista de credibilidade do caráter técnico do Banco Central, frente às preocupações do mercado em relação às interferências políticas na direção, com a expectativa pela divulgação do próximo presidente. A demonstração é de que o comitê não hesitará em subir caso entenda necessário para trazer a inflação à meta.

Há um debate sobre a necessidade de um novo ciclo de aperto monetário. Quais são os principais argumentos a favor e contra essa medida?

O debate se dá, principalmente, em relação às expectativas e a credibilidade do mercado na gestão do governo, em grande parte. Um dos principais fatores de risco altista para a inflação no cenário do Copom hoje é a desancoragem das expectativas, que observamos em um movimento muito forte ao longo de 2024. Reuniões do Copom com dissenso entre os membros e discussões e narrativas por parte do governo criticando a política monetária também acenderam sinais de alerta no mercado, que espera um Banco Central forte no controle inflacionário para manutenção do poder de compra do real, mas que reage negativamente nas expectativas de inflação se vê um risco maior na condução da política. Nesse mesmo ínterim, o risco fiscal  aumentado com o crescimento acelerado das despesas públicas (apesar de um crescimento relevante nas receitas, mas ainda insuficiente para cumprir as diretrizes do arcabouço fiscal), também gera uma preocupação em relação à trajetória e peso da dívida pública.

Um novo ciclo de aperto monetário pode ser entendido como necessário em caso de uma persistência maior da inflação acima da meta ou pior, subindo além dos intervalos de tolerância (até 4,5%) no horizonte relevante. Na última inflação divulgada de julho, o acumulado de 12 meses atingiu 4,5%, no limite do intervalo, já com impactos da alta do dólar nos preços. Há um sinal de alerta que deve ser acompanhado.

Por outro lado, a possibilidade de uma recessão nos Estados Unidos e uma demanda fraca por parte da China, como resultados das políticas de aperto monetário por lá, também podem ter impactos na nossa atividade, com uma demanda menor para os setores exportadores e preço das commodities em baixa. Nesse cenário, veríamos um impacto no crescimento econômico projetado e possivelmente na necessidade de um novo ciclo de aperto monetário. Sem deixar de considerar que o patamar de 10,5% na taxa Selic já é restritivo, considerando que especialistas debatem a linha de 9% como o juro neutro no Brasil – já incorporando um cenário de juro americano mais alto que o patamar histórico.

Nesse ano, passamos rapidamente de uma discussão de Selic em 9% no final de 2024 para um aumento de projeção da Selic para 9,75% no final do ano que vem – com o Copom considerando cenário alternativo de Selic em 10,5% no horizonte. Portanto, já estamos falando de uma perspectiva de maior aperto monetário do que a que tínhamos no início do ano, com novos riscos de inflação no radar. O cenário externo terá bastante impacto na demanda e no câmbio, além de gatilhos para o fluxo de capital estrangeiro para os mercados emergentes, de forma que o caminho para a política monetária se mostra muito em aberto nesse momento.