SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para o governo, os precatórios talvez sejam um “meteoro” orçamentário, como descreveu o ministro Paulo Guedes (Economia). Para milhares de cidadãos que buscam a Justiça Federal anualmente, são a compensação por erros cometidos pela administração pública e por muitos anos de espera.
João Paulo, 56, (que pede para não ser identificado pelo nome real) vê no pagamento de seu precatório, previsto para 2023, a esperança de finalmente colocar as contas em dia. Há dois meses, conseguiu a concessão de sua aposentadoria pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
O direito ao benefício previdenciário chegou com três anos de atraso. “Nos meus primeiros anos de trabalho, ficava em chão de fábrica, então tinha direito ao tempo especial, mas o INSS não reconheceu. Ganhei na primeira instância, eles recorreram e perderam. Tiveram que implantar”, diz o recém-aposentado.
Seus atrasados judiciais somam todos os meses de aposentadoria que ele deixou de receber desde que fez o pedido. A dívida do INSS com ele virou um precatório, pois a soma ultrapassou o limite de 60 salários mínimos.
Nos últimos anos, ele vem fazendo bicos. Quando completou 50 anos, diz, viu o mercado se fechar. Foi demitido e passou a acumular contas em atraso. Chegou a cogitar vender o precatório emitido há alguns dias, mas foi desaconselhado pelo advogado.
“Queriam descontar quase metade do que eu tenho para receber, desisti. Se ainda fossem uns 15%.” A possibilidade de o dinheiro demorar ainda mais o preocupa. “Se Guedes conseguir parcelar esses precatórios, vou ter dificuldade para pagar minhas dívidas. Estava vivendo com 30% do que eu recebia quando estava no mercado”, diz.
O ministro quer enviar ao Congresso uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para mudar a sistemática de pagamento dos precatórios e criar um fundo a ser abastecido com o dinheiro da privatização de estatais. Esse mesmo fundo deverá bancar as dívidas judiciais da União.
Os detalhes sobre o parcelamento dos precatórios e a operacionalidade do fundo ainda estão em discussão.
Como ocorre no caso de João Paulo, que já esperaria cinco anos, entre o início da ação, em 2018, e o depósito, previsto para 2023, há outros milhares de processos tramitando em varas da Justiça Federal ou nos Juizados Especiais Federais por discordâncias de decisões administrativas da Previdência.
Análise da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) a partir dos sistemas do INSS aponta um aumento de 500% no número de benefícios previdenciários desde 2004. Há 17 anos, um a cada 50 benefícios eram concedidos por decisão judicial. Em 2020, era um a cada oito.
As ações em tramitação na Justiça Federal e que têm natureza alimentar discutem, além de benefícios previdenciários, correções de salários de servidores federais, benefícios assistenciais e indenizações por morte ou invalidez.
Em 2021, segundo dados do Tesouro Nacional analisados pela IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado, dos R$ 56,4 bilhões que serão gastos com precatórios, R$ 35,5 bilhões referem-se a dívidas da União com benefícios previdenciários, pessoal e BPC (benefício de prestação continuada).
Entre os casos de natureza comum, que consumirão R$ 20,8 bilhões neste ano, estão os demais processos, como os que discutem tributos federais.
Para o ano que vem, o Ministério da Economia projeta que os gastos com esses precatórios e RPVs (Requisições de Pequeno Valor) comuns mais que dobrem. Dos R$ 20,8 bilhões neste ano, chegarão a R$ 43,7 bilhões em 2022, alta de 110%.
O aumento entre as dívidas judiciais previdenciárias está estimado em 32,66%, de R$ 22,6 bilhões para R$ 30 bilhões. Somados todos os precatórios de origem alimentar, o governo calcula uma despesa de R$ 45,3 bilhões em 2022, metade do orçamento de R$ 89,1 bilhões previstos para essas despesas. Apesar da sinalização do governo de que a proposta de emenda deverá prever um limite de R$ 455 mil para o pagamento de precatórios à vista, a mudança na regra ainda deixa inseguros advogados e credores da União.
Uma das preocupações vem da possibilidade de o governo limitar o gasto com precatórios a um percentual da receita corrente líquida. Esse gatilho orçamentário deve jogar para o ano seguinte tudo o que estourar o equivalente a 2,6% da receita líquida.
A equipe que trabalha na proposta calcula que todos os precatórios acima de R$ 455 mil sejam atingidos pelo gatilho, parcelando 8.771 pagamentos que a União deveria acertar até o fim de 2022.
O dispositivo de vinculação à receita líquida é similar ao que os estados usam no pagamento dessas dívidas e a experiência não é das melhores, especialmente aos credores, que passam até décadas esperando o pagamento de valores conquistados na Justiça.
“O governo deve R$ 90 bilhões, mas só tem R$ 60 bilhões para pagar. No outro ano, só tem R$ 60 bilhões de novo e ainda tem os que ficaram do ano anterior. E assim vai ‘embarrigando’ o pagamento”, diz o advogado Arismar Amorim Jr.
Se a PEC for aprovada como quer o governo, R$ 41,5 bilhões deverão ser parcelados.
João Badari, advogado que atua na Grande São Paulo, diz que a medida em discussão é um tipo de “terrorismo econômico”. O limite de R$ 455 mil traz algum alívio para a maioria dos trabalhadores que contesta decisões do INSS na Justiça.
Algumas revisões, porém, como as que cobram a correção dos tetos previdenciários, geram aumentos significativos sobre as aposentadorias, gerando precatórios altos. “São pessoas que se aposentaram entre 1988 e 1991. Imagina esperar nove anos para receber a correção de um erro cometido há 30 anos.”
O presidente do Ieprev (Instituto de Estudos Previdenciários, Trabalhistas e Tributários), Roberto de Carvalho Santos, diz que o governo, ao atacar o aumento no volume de dívidas judiciais, ignora a existência de um esforço para reduzir a judicialização, a partir do estímulo a acordos administrativos, e também uma eventual redução no número de processos iniciados durante a pandemia.
Para ele, o Ministério da Economia também erra se não estabelecer, para a redação da PEC, a diferença entre os tipos de precatórios. Santos defende que os de origem alimentar, aqueles relacionados à sobrevivência do cidadão, como salários, pensões e indenizações, não sejam afetados pelo parcelamento, mesmo quando acima de R$ 455 mil.
“Os precatórios são processos que tramitaram por muitos anos. Sou totalmente contra porque eles não decorrem de questão sazonal. São ações de pessoas idosas que esperaram por anos uma decisão da Justiça. Os valores são altos porque são discussões que levam 15 anos”, diz o advogado.
O especialista questiona ainda a legalidade da medida. Para ele, uma alteração na Constituição para adiar esses pagamentos não poderia afetar precatórios já emitidos, ou seja, aqueles que deveriam ser acertados em 2022.
Isso porque eles já foram expedidos dentro da regra atual e, segundo a legislação, o governo tem até 31 de dezembro para pagar. “É uma proposta pouco republicana e que ignora o direito constitucional da dignidade humana”.