SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O mês de setembro de 2021 ficará marcado pela conclusão bem-sucedida de uma operação bastante emblemática para o mercado brasileiro de capitais. Pela primeira vez, em uma escala desse porte, foram distribuídos R$ 17,5 milhões em CRAs (Certificados de Recebíveis Agrícolas) vinculados à produção de sete cooperativas de agricultura familiar, cujos membros integram o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
A Gaia, responsável pela modelagem do instrumento financeiro, já olha para novas oportunidades nesse filão. Segundo João Paulo Pacífico, presidente da Gaia Impacto, as milhares de pessoas que se interessaram pela oferta, sem nenhum apoio de venda ativa por parte de grandes bancos ou corretoras, mostraram que causas sociais têm seu espaço reservado nas carteiras, mesmo que para isso os investidores tenham de abrir mão de rentabilidade.
“Foi a primeira vez que um movimento social no Brasil acessou nessa escala um capital que não chegava neles, que até então estava restrito apenas a grandes empresas”, diz o presidente da Gaia. “Viabilizamos um instrumento financeiro às cooperativas de agricultura familiar que chegou com toda governança necessária, que muita gente não achava que seria possível”, diz Pacífico.
Em meio a atenção atraída pelo sucesso da empreitada, o executivo afirma que estão nos planos da Gaia modelar estruturas parecidas via mercado de capitais para outros movimentos sociais, relacionados, por exemplo, a projetos envolvendo indígenas, quilombolas e povos ribeirinhos da Amazônia.
A taxa de remuneração prefixada dos CRAs do MST foi de 5,5% ao ano, com vencimento em 2026. Embora o retorno oferecido pelos títulos, isentos de IR (Imposto de Renda) à pessoa física, tenha sido bem inferior ao que é possível encontrar hoje em títulos públicos de prazo parecido na plataforma Tesouro Direto, a demanda pelos CRAs superou em mais de três vezes o tamanho da oferta.
Cerca de 1,5 mil investidores conseguiram aplicar nos certificados, de um total de aproximadamente 5 mil que chegaram a abrir conta na corretora Terra Investimentos com o intuito de participar da operação, que teve R$ 100 de tíquete de entrada.
O impacto social proporcionado ajuda a entender o apelo público do negócio. As sete cooperativas agregam um total de aproximadamente 13 mil pessoas, em sua maioria, pequenos agricultores que cultivam alimentos livres de agrotóxicos como arroz, feijão, milho, açúcar mascavo, leite e derivados.
Luis Carlos Costa, representante do programa Finapop (Financiamento Popular para Alimentos Saudáveis), que assessorou as cooperativas na estruturação do CRA, explica que, pelo fato de os assentamentos da reforma agrária serem territórios de controle da União, as terras não podem ser dadas como garantia, o que historicamente dificultou o acesso a crédito por parte dos membros das cooperativas.
“O CRA surgiu como uma oportunidade de acesso ao crédito a juros menores do que a média, e, ao mesmo tempo, com a produção das cooperativas sendo aceita como garantia para o financiamento”, diz Costa. Ele explica que o Finapop foi lançado no início do ano passado em âmbito nacional pelo MST e parceiros, com a proposta de viabilizar alternativas para o financiamento das cooperativas de agricultura familiar.
O representante do programa de financiamento acrescenta que as sete cooperativas foram selecionadas com base nos respectivos projetos de investimento produtivo apresentados e já possuem um porte relativamente grande em termos comparativos, com marcas próprias e contratos estabelecidos com redes comerciais.
“A avaliação que tem sido feita junto às cooperativas é que a operação com o CRA foi um sucesso, conseguindo adequar toda a parte burocrática de comprovação de garantias, e comunicar os investidores sobre sua proposta, de financiar a produção de alimentos limpos, saudáveis, a partir da agricultura familiar”, afirma Costa.
Ele diz que novas estruturas para viabilizar recursos, não necessariamente via CRAs, têm sido trabalhadas para atender à demanda das diversas cooperativas ao redor do país. Hoje já são 44 cooperativas vinculadas à Finapop em busca de formas alternativas de financiamento.
Essa foi a segunda incursão do MST no mercado de capitais. Em maio de 2020, um projeto-piloto levantou R$ 1,5 milhão para a Coopan (Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita) no Rio Grande do Sul.
O economista Eduardo Moreira teve papel fundamental para a viabilização das operações e atuou como investidor nas duas ofertas, com um investimento consolidado total de R$ 1 milhão. Foi ele quem fez a ponte entre o movimento social e a securitizadora Gaia.
O economista defende que a taxa de juros proposta pelos CRAs é um aspecto importante que precisa ser levado em conta ao avaliar o retorno que o ativo oferece, mas não deve, e nem pode ser o único.
“O retorno é tudo aquilo que volta para gente quando fazemos um investimento. Qual o retorno que se tem ao financiar uma empresa como a Taurus?”, questiona Moreira.
Ele diz que, embora a taxa de rentabilidade do certificado das cooperativas seja a metade da encontrada em um título público de prazo semelhante, o retorno social mostrou que os investidores não estão preocupados apenas com o aspecto financeiro relacionado aos seus investimentos.
“Se mostramos para as pessoas que elas podem ter o poder de escolha, do que financiar, e não delegar esse poder deixando o dinheiro com os bancos, percebemos que elas estão dispostas a aceitar taxas de juros muito menores. Neste sentido, é algo revolucionário”, afirma Moreira.
Rafael Maluf, sócio do escritório Veirano Advogados responsável pelo assessoramento jurídico à operação, diz que o caminho das pedras percorrido para atender a todas as exigências legais abre um importante precedente para que iniciativas parecidas surjam a reboque.
O advogado lembra que a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) chegou a suspender a oferta, tendo sido necessário esclarecer à autarquia o entendimento quanto à vinculação das cooperativas com o MST, que não existe de maneira formal.
A questão, explica Maluf, é que as cooperativas possuem diversos integrantes, e não é possível cravar que 100% deles têm vínculo com o MST. “Há uma quantidade grande de membros das cooperativas que são sim vinculados ao movimento, mas não há uma formalização da relação entre as cooperativas e o MST”, diz o sócio do Veirano.
Feito o esclarecimento adicional, a suspensão imposta pela CVM foi revogada, e a emissão concluída dias depois. “Uma operação desse tipo quebra barreiras e muda a forma de pensar de muitos investidores”, afirma o sócio do escritório.