O Brasil enfrenta uma das mais severas crises hídricas mas está distante do cenário previsto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ele conclamou a população a economizar energia para evitar o colapso de hidrelétricas.
“Em grande parte dessas represas já estamos na casa de 10%, 15% de armazenamento. Estamos no limite do limite. Algumas vão deixar de funcionar se essa crise hidrológica continuar existindo”, disse em live na semana passada.
Técnicos do setor, consultores, analistas e até assessores de Bolsonaro consultados pela Folha de S.Paulo afirmam que, mesmo diante das piores projeções do ONS (Operador Nacional do Sistema), nenhuma usina corre o risco de parar.
“Pode haver, como já é o caso, restrições na geração [diante da falta de água], mas a paralisação é praticamente impossível”, disse Gustavo Carvalho, gerente de Preços e Estudos de Mercado da Thymos Energia.
Carvalho ressaltou que nem nas piores crises -1999, 2014 e 2015-, com condições hídricas tão graves quanto a atual, houve interrupção de atividades nas usinas.
Há duas décadas, a hidrelétrica de Furnas, na bacia do rio Grande, registrou o nível histórico mais baixo de seu reservatório -6% do volume útil de água. “Mesmo assim, continuou operando”, afirmou o analista.
Procurado, o Palácio do Planalto não havia respondido até a publicação desta reportagem.
Assessores de Bolsonaro afirmam reservadamente que o presidente exagerou ao falar da crise hídrica como forma de apelar aos brasileiros por uma redução voluntária do consumo, uma medida considerada urgente diante do agravamento da crise hídrica -a pior das últimas nove décadas.
Depois de muita discussão com o Planalto, o Ministério de Minas e Energia lançou as diretrizes do programa de bonificação para os consumidores do ambiente regulado que optarem por racionar seu consumo, especialmente nos horários de pico.
A crítica é que a economia gerada será pífia porque a redução no consumo não será obrigatória.
Mesmo assumindo o agravamento da crise em cadeia nacional, o ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia) em nenhum momento sinalizou para um racionamento ou o risco de desligamento de usinas.
Para Carvalho, nas crises passadas e na atual, prevaleceram questões políticas nas estratégias. “A ex-presidente Dilma Rousseff estava tentando a reeleição [em 2014]. Creio que Bolsonaro também pesa o impacto de uma decisão como essa [para sua campanha em 2022]”, disse.
Nesse cenário, o ONS fez simulações do abastecimento até o final deste ano.
Na pior das hipóteses, sem acréscimo de energia nova, a maior parte dos reservatórios das bacias de rio Grande, Parnaíba e São Francisco estariam em 3% de armazenamento, muito abaixo do nível mínimo histórico.
Isso pode ocorrer em Furnas e Mascarenhas de Moraes (no rio Grande) e em todas as usinas do rio Parnaíba (Nova Ponte, Emborcação, Itumbiara e São Simão).
Na usina de Ilha Solteira, que tem uma hidrovia, o nível de água pode cair dos atuais 325,4 metros para 319 metros, comprometendo a navegação -não a geração de energia.
Em Três Marias e Sobradinho, na bacia do rio São Francisco, a previsão é impor restrições mais severas do que as atuais–algo que ocorre quando os reservatórios estão a 30% e 20% de seu volume útil, respectivamente.
Nas projeções do ONS, os dois chegarão em novembro com 21% e 17,9%, no pior dos cenários.
O ONS também traçou uma projeção menos pessimista ao contar com uma injeção de 16,5 GW médios (gigawatts médios) ao sistema entre setembro e novembro por meio de importação de energia ou acionamento de termelétricas.
Hoje o custo médio do MWh (megawatt-hora) dessas duas opções giram em torno de R$ 2.000, quase três vezes mais do que o preço de referência da energia no mercado livre.
De acordo com essa projeção do ONS, os reservatórios seriam poupados, mas não tanto assim. Em sua grande maioria, ficariam com 5% de seu volume útil -somente dois pontos percentuais mais elevados do que no cenário pessimista.
Furnas, Mascarenhas de Moraes e Emborcação estariam com 10% de armazenamento (o dobro do cenário anterior) e Sobradinho ficaria com 23%.
Técnicos do Ministério de Minas e Energia que falaram com a Folha sob anonimato acompanham o monitoramento diariamente e afirmam que, mesmo assim, não projetam nenhuma parada de hidrelétricas.
Eles garantem que Bolsonaro está recebendo relatórios detalhados com as informações precisas da situação energética do país, mas que abusou de seu estilo “mais livre” ao chamar a população a fazer economia.
Bolsonaro tenta evitar mais danos à popularidade. Segundo assessores, a ordem foi transmitida a Bento e Paulo Guedes (Economia) é que evitem notícias ruins.
Ambos tentam amenizar duas das principais crises: a deterioração da economia (com desemprego elevado, inflação e juros em alta) e a crise de energia, que não só compromete o consumo quanto causa aumento de preços.
No acumulado dos últimos 12 meses até agosto, o IPCA-15 atingiu 9,3% –e um dos maiores impactos foi o da energia elétrica, que subiu 5% no mês, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Boa parte desse aumento se explica pelo reajuste da bandeira vermelha nível 2 que, no final de junho, passou para R$ 9,49 cada 100 kWh (quilowatt-hora), um aumento de 52%.
As bandeiras constam da conta de luz, refletem um custo adicional na geração da energia, e servem para indicar a necessidade de se reduzir o consumo. Caso contrário, o cliente paga mais.
O reajuste de junho, no entanto, não foi repassado completamente. A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) deixou uma parte (cerca de R$ 3 bilhões) para depois e, desde então, esse déficit passou de R$ 5 bilhões com o aumento dos custos de geração em razão de acionamento de térmicas.
Em vez de anunciar o reajuste da bandeira em vigor, a Aneel -pressionada pelo governo- decidiu criar uma nova bandeira, batizada de “escassez hídrica”, cujo valor, de R$ 14,20 cada 100 kWh, é justamente o da bandeira vermelha 2 reajustado em quase 50%.