O fortalecimento recente da relação entre China e Rússia tem um motivo em comum: conter a pressão dos EUA. No entanto, o apoio de Pequim à Moscou, em um momento em que a economia russa sofre sanções pesadas, deve ser limitado pelos interesses da própria China, como não perder acesso ao mercado americano, avalia Kishore Mahbubani, pesquisador sênior do Asian Research Institute.
“A China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas”, avalia.
Mahbubani aponta que os chineses devem estar analisando de perto como as punições à Rússia estão sendo aplicadas, para pensar como se proteger de medidas similares no futuro. “A China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar e se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele.”
Ex-diplomata de Singapura que chefiou o Conselho de Segurança da ONU, Mahbunani, 73, é autor de vários livros sobre a geopolítica da Ásia. Seu título mais recente, “A China Venceu?” (ed. Intrínseca), foi lançado no Brasil em 2021. Ele conversou com a reportagem por vídeochamada, a partir de Singapura.
Como avalia a aproximação recente entre China e Rússia?
KISHORE MAHBUBANI – Os dois países estão sob grande pressão dos EUA. Conforme a China se torna mais forte, é natural que os EUA tentem pará-la. É uma regra pétrea da geopolítica, há 2.000 anos. No caso da Rússia, há uma relação muito difícil com os EUA, porque ela sente que os americanos estão expandindo a Otan em seu quintal. Os dois países têm seus próprios problemas com os EUA e podem tentar cooperar entre si.
Ao combinarem esforços, elas podem aumentar a pressão sobre os Estados Unidos. Assim, uma parceria forte entre as duas é compreensível. Mas é importante enfatizar que esta relação não é uma parceria de defesa como a Otan, onde há mecanismos automáticos de defesa mútua.
A parceria é forte conforme a convergência de interesses. A China ainda acredita na integridade territorial dos países, mas não é do interesse chinês ver o colapso da Rússia, porque se isso acontecer, a China ficará sozinha para lidar com os EUA. Mas, ao mesmo tempo, é uma vantagem para a China que a Rússia desvie a atenção dos EUA, de certa forma.
Quão longe a China pode ir para ajudar a Rússia, em questões como lidar com as sanções, por exemplo?
KM – A China tem um comércio muito maior com os EUA do que com a Rússia. E o mercado americano é muito mais importante para a China do que o russo.
Assim, de um lado, acho que a China cumprirá as sanções onde for preciso, como nos bancos chineses que negociam com dólares. Se eles negociarem com bancos russos, poderão ser sancionados também. Ao mesmo tempo, a China tem bancos que negociam apenas com yuans, sem nenhuma conexão com dólares. Esses bancos não podem ser alvo de sanções dos EUA. Eles não são obrigados pela leis internacionais a aplicar as sanções americanas contra a Rússia, porque são sanções bilaterais, não multilaterais. Mas os chineses precisam ser cuidadosos para garantir que suas empresas não entrem em conflito com as sanções americanas.
A China tem condições de permanecer neutra neste conflito?
KM – A China está tentando ter um papel de mediadora. É algo muito importante, porque há poucas partes hoje que podem falar com Rússia e Ucrânia e terem a confiança de ambas. A Índia pode ter um papel similar também.
O conflito pode mudar o equilíbrio de poder entre EUA e China no futuro?
KM – É muito cedo para dizer. Você pode ter um cenário em que a Rússia falha por completo e colapsa como resultado da invasão falha da Ucrânia. A União Soviética colapsou em parte por conta de falhar na invasão do Afeganistão. Ou pode-se ter um cenário em que a Rússia vença e saia mais forte.
Apesar disso, uma coisa que podemos dizer é que a China está estudando muito cuidadosamente, cada sanção aplicada pelos EUA à Rússia, e indo para a próxima questão lógica: como a China responderia a uma sanção similar? Por exemplo, uma das sanções que geram mais dano é o congelamento de reservas do Banco Central russo no exterior. Isso nunca havia sido feito antes. E as reservas da China são muito, muito maiores do que as da Rússia.
Neste sentido, penso que a China acelerará seus esforços para reduzir a dependência do dólar em seu comércio internacional, para se tornar menos vulnerável às sanções dos EUA. Quanto mais você usa o dólar como arma, mais você cria incentivos para países se afastem dele. E se o dólar perder seu papel de moeda para reservas globais, os EUA perderão seu exorbitante privilégio e não serão mais capazes de viverem além de seus meios, como têm feito.
O que o Brasil e outros países podem fazer para tentar resolver esta crise?
KM – É importante que o resto do mundo fale mais claramente e explique para os EUA e Europa que os esforços para expandir a Otan até a Ucrânia são muito imprudentes. Em teoria, obviamente, o povo da Ucrânia tem o direito soberano de decidir seu tipo de governo. Mas há realidades geopolíticas que precisam ser levadas em conta. A grande lição da Ucrânia é que quando países como Rússia e China dizem de forma muito clara que há linhas vermelhas que não devem ser cruzadas, elas devem ser respeitadas se você quer prevenir uma guerra.
Faz falta no mundo hoje que países poderosos como Índia, Brasil e outros Brics tenham um papel de mediação. Eu apoio o esforço do Brasil para se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. E o melhor meio de o Brasil aprimorar sua campanha por isso é se envolver em grandes responsabilidades internacionais, como tentar prevenir um conflito como o da Ucrânia.
Um eventual sucesso da Rússia em tomar a Ucrânia pode estimular a China a tentar algo em relação a Taiwan?
KM – As situações são muito diferentes. A Ucrânia é um país independente, membro da ONU, e com soberania reconhecida pela maioria dos países. Taiwan não é reconhecido como um país soberano e independente pela maioria dos países. E muitos governos que estabeleceram relações diplomáticas com a China, como o Brasil, reconhecem que China e Taiwan pertencem ao mesmo país. Neste sentido, você não teria o mesmo impacto gerado pela invasão da Rússia na Ucrânia. Ao mesmo tempo, a China será muito cuidadosa e não começará uma guerra em Taiwan de modo imprudente, a menos que Taiwan resolva declarar independência.
E como vê a aproximação dos EUA com Austrália, Japão e Índia, com a formação do grupo Quad? Isso pode incomodar a China?
KM – O Quad é um grupo muito estranho. Oficialmente, ele nega ser uma aliança de defesa contra a China. Diz ter outras metas, como compartilhar vacinas, mas ninguém duvida que é um clube desenhado para contrabalançar a China.
A questão é: é melhor tentar isso com três ou quatro países? Ou criar grupos multilaterais maiores, como a Asean [Associação de Nações do Sudeste Asiático] está tentando fazer? A Asean tem buscado incluir a China em grupos multilaterais, e a experiência mostra que quando você inclui a China, fala com ela, tem mais chances de ter a China como um membro responsável do sistema global, em vez de tentar excluí-la ou isolá-la. É uma abordagem mais sábia.
É como o modelo da União Europeia, de aproximar os países para evitar conflitos entre eles.
KM – Sim, mas a Asean é uma organização regional muito mais fraca do que a UE, embora tenha tido mais sucesso em prevenir guerras e conflitos na região. Nos últimos 30 anos, vimos mais guerras na Europa e em seus arredores, como na ex-Iugoslávia, na Líbia, e agora na Ucrânia.
A União Europeia tem sido muito boa em preservar a paz dentro de suas fronteiras, mas muito ruim em compartilhar essa paz com os vizinhos. Nisso a UE pode aprender lições com a gente. A Asean tem sido muito boa em criar e integrar os países e seus grandes vizinhos em estruturas mais cooperativas. Suas reuniões de Cúpula da Ásia Oriental incluem EUA, Rússia, China, Japão, Índia, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia. É uma melhor abordagem para o mundo se inspirar.