Da falta de fertilizantes ao aumento do preço da energia, com implicações sobre a inflação e a balança comercial, o Brasil deve sofrer fortes impactos da crise energética chinesa, que vem obrigando o país asiático a promover apagões programados por falta de capacidade de geração.
O cenário adverso se soma ao desarranjo na cadeia logística internacional, que já vem prejudicando diversos setores da economia, e pode ser mais uma trava na recuperação econômica brasileira após o período mais crítico da pandemia.
Os primeiros impactos já são sentidos pelo agronegócio, com maior dificuldade para comprar defensivos e fertilizantes, pela mineração, que vê as cotações internacionais em queda, e pelo setor de energia, afetado pelos preços recordes do gás natural.
“A China é o maior destino das exportações do Brasil, tanto de produtos agroindustriais quanto de minérios”, ressalta o pesquisador da Universidade de Johanesburgo, na África do Sul, Paulo César Morceiro. “Isso é mais um limitante para destravar o crescimento do PIB [Produto Interno Bruto] do Brasil.”
Especialistas dizem que a crise chinesa provocou uma “tempestade perfeita” no setor energético mundial, impulsionando os preços não só do carvão, que responde por mais de metade da geração de energia daquele país, mas também do gás natural, seu principal substituto.
A elevada procura fez os dois produtos atingirem preços recordes no mercado internacional. Em ambos os casos, especialistas veem um desequilíbrio entre oferta e demanda, o que deve levar algum tempo até que as cotações recuem.
No caso do carvão, a própria China tem responsabilidade no cenário. Ao reduzir a produção interna por razões de segurança operacional e deixar de comprar da Austrália por questões geopolíticas, o país precisou disputar o produto com a Europa para compensar a falta de água em suas hidrelétricas.
No caso do gás, a Europa já vinha sofrendo com queda em seus estoques e nas exportações russas às vésperas da elevada demanda para aquecimento no inverno. A região passou a ter que disputar o combustível com o mercado asiático.
O elevado preço do gás afeta diretamente o Brasil, diz a consultoria PSR, já que parte dos contratos de térmicas prevê o repasse periódico das oscilações internacionais ao custo de geração de energia. A escalada ocorre num momento em que o Brasil está usando toda a sua capacidade térmica disponível.
Além disso, a China é a maior produtora global de equipamentos para a geração de energia solar, produtos que devem ter o custo impactado pela crise em meio a uma corrida para ampliar a capacidade brasileira de geração. Matéria-prima para a fabricação de painéis solares, o silício, por exemplo, ficou 150% mais caro apenas em setembro.
O pesquisador da PSR Rodrigo Novaes lembra que algumas províncias chinesas autorizaram aumento da tarifa de energia para custear o carvão mais caro, o que deve jogar pressão sobre os preços dos produtos e insumos chineses.
O agronegócio, por exemplo, vem sentindo alterações no mercado de fertilizantes, que é intensivo em uso de energia. “Essa produção pode ser prejudicada, levando a China a restringir a exportação desses produtos”, completa o coordenador do mestrado profissional em agronegócio da FGV, Felippe Serigati.
“Impacta de duas formas: pelo aumento dos custos de produção e também pode pressionar a produtividade, uma vez que os produtores podem ter de aplicar uma quantidade inferior desses fertilizantes em suas lavouras”, completa.
O professor de economia chinesa do Insper, Roberto Dumas Damas, vê aumento das pressões inflacionárias, tanto pela elevação do custo de produção dos alimentos quando pelo impacto no câmbio da redução das exportações, já que 30% das vendas externas brasileiras vão para a China.
“Fertilizantes e defensivos agrícolas vão subir demais e acabam afetando o agronegócio. Se tem choque de oferta de defensivos e fertilizantes, a inflação de alimentos vai piorar”, afirma. “E, se vende menos ao exterior, há efeito no câmbio [elevação do dólar]”.
Um dos principais produtos de exportação do Brasil, o minério de ferro despencou nos últimos meses, passando do patamar recorde superior a US$ 210 por tonelada em julho para a casa dos US$ 110 por tonelada.
O setor siderúrgico, que poderia se beneficiar com os cortes de produção na China, vê o cenário com desânimo, já que há excesso de produção global de aço. “Existe todo um processo de guerra de mercado no mundo que trava um pouco a exportação”, diz Cristina Yuan, diretora de assuntos institucionais do Instituto Aço Brasil.
Os especialistas dizem que outras cadeias produtivas podem ser afetadas diretamente, pela elevada dependência de materiais e equipamentos chineses, como a de eletroeletrônicos e a automotiva, ampliando a pressão já exercida pelo desarranjo da indústria global provocada pela pandemia.
Há ainda os efeitos indiretos provenientes de uma esperada desaceleração da economia chinesa. “A desaceleração da China impactaria o mundo todo, pois atualmente cerca de um terço do crescimento mundial deve-se apenas ao país”, diz Morceiro.
Em relatório divulgado nesta semana, o banco Goldman Sachs estima que 44% da atividade industrial chinesa está baseada nas nove províncias com pior situação energética e que os cortes na produção devem levar o país a registrar crescimento zero no terceiro trimestre.
O mercado espera algum tipo de intervenção do governo central chinês para solucionar a crise, mas lembra também que o país já vem enfrentando uma turbulência com as dificuldades financeiras da gigante Evergrande, o que pode limitar o poder de reação.
“Se continuar assim teremos um superávit comercial bem magrinho em 2022”, afirma o presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil), José Augusto de Castro avalia. Ele avalia, porém, que a situação chinesa é uma oportunidade para que o Brasil eleve o valor agregado de suas exportações.
“Hoje exportamos para a China basicamente matéria prima bruta, como soja em grão. Lá eles industrializam”, diz ele. “Só que agora a China está paralisando fábricas que produzem o óleo de soja. Podemos fazer aqui.”
No setor de energia, uma preocupação futura é o impacto da crise no processo de transição energética, já que a falta de energia na China ocorre em meio a um esforço para reduzir a geração a carvão e descarbonizar a economia.
O professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ, Maurício Tolmasquim, lembra que a China é o país que mais investe hoje em renováveis, como solar e eólica, mas acabou sendo prejudicada por uma combinação entre desequilíbrio na oferta de carbono e seca sobre reservatórios de hidrelétricas.
“É fundamental para o planeta que o governo central da China não volte atrás nas metas de redução de gases do efeito estufa”, diz ele. “Seria muito ruim se essa crise resultasse em um retrocesso.”