Na quinta-feira (9), o presidente americano, Joe Biden, passou uma hora e meia ao telefone com o mais poderoso líder chinês em três décadas, Xi Jinping.
No cardápio da conversa, segundo a Casa Branca, estavam temas espinhosos que alimentam a Guerra Fria 2.0 entre eles, mas principalmente “responsabilidade de ambas as nações de garantir que a competição não se transforme em conflito”.
Tal contato ter ocorrido às vésperas do aniversário de 20 anos dos ataques terroristas que definiram o começo do século 21, o 11 de Setembro, ultrapassa o campo das coincidências. Biden preside o fim de um ciclo após a retirada do Afeganistão, primeiro país alvejado nas guerras que nasceram em 2001.
Para entender isso, é preciso voltar ao momento em que George W. Bush recebe, com seu ar aparvalhado, a notícia dos ataques enquanto visitava uma escola.
Os Estados Unidos vinham de uma orgia de poder decorrente da vitória na primeira Guerra Fria, encerrada definitivamente em 1991 com a morte da União Soviética. O mundo havia girado por 40 anos em torno de uma disputa por hegemonia baseada em força bruta do fogo nuclear e conflitos por procuração.
Na década de 1990, como incorretamente proclamara o historiador americano Francis Fukuyama, vivia-se o “fim da história”. O Leste Europeu tornou-se capitalista, a Rússia embarcou numa festa ultraliberal que a destruiu, os valores americanos haviam vencido.
Com valores, vêm negócios, como a expansão do ideário econômico hegemônico (o tal Consenso de Washington) por franjas laterais do Ocidente, como o Brasil, provou. A globalização ganhou tração, a Europa adotou regimes com roupagem social-democrata festiva.
O processo, como seria natural, deixou muitos para trás. O fundamentalismo islâmico, fenômeno político que vinha da década de 1920, ganhou corpo fora das disputas do mundo muçulmano e lançou uma versão modernizada da jihad, a guerra santa.
A Al Qaeda de Osama bin Laden encarnava a hidra, escalando ataques até chegar ao 11 de Setembro.
O golpe que levou ao chão as Torres Gêmeas, parte do Pentágono e um avião que não atingiu seu alvo abalou a convicção hegemônica americana. Mas abriu portas para uma oportunidade, elaborada pelos ditos falcões que faziam a cabeça de Bush.
Derrubar o Talibã, que tornara a partir de 1996 a maior parte do Afeganistão numa masmorra medieval, era a única resposta proporcional cabível: o grupo afinal de contas protegera Bin Laden e seus homens.
Mas a empatia universal à causa transformou uma expedição punitiva em um instrumento de ampliação da desafiada hegemonia dos EUA, aprofundando um conceito que remontava à vitória na Segunda Guerra.
Naquele conflito, o mal (nazistas, fascistas, imperialistas japoneses) era o inimigo, mesmo com a relutância extrema dos americanos de ir à luta e o imperativo geopolítico: a derrota da Europa e da União Soviética ameaçava os EUA.
Criou-se então a mitologia da guerra justa, que sofreu golpes de credibilidade com o empate na Coreia em 1953 e com a derrota no Vietnã, em 1975.
Mas ela nunca morreu -ganhou tons políticos nos anos 1990 com a elaboração narrativa dos “soldados cidadãos”, dispersores puros de valores democráticos.
Isso foi uma obra do historiador americano Stephen Ambrose ampliada “ad nauseam” pela maestria técnica de Steven Spielberg no cinema (“O Resgate do Soldado Ryan”) e na TV (“Band of Brothers”).
Ao longo dos anos 1990, ganharam corpo então intervenções militares “do bem”, aspas compulsórias. Houve o fracasso na ex-Iugoslávia e um relativo sucesso na criação de Kosovo.
Após o 11 de Setembro, a guerra justa evoluiu: virou “construção de nações” com valores ocidentais alienígenas em sua maioria. Mesmo no Afeganistão sem petróleo, havia um caráter geopolítico: o país fecharia um cerco, a leste, contra o Irã já pressionado.
O arcabouço intelectual foi pescado de outro autor americano, o cientista político Samuel Huntington, que em 1993 havia elaborado a teoria do “choque de civilizações” -resumindo, o islã militante contra o resto do mundo.
O próximo passo foi oportunista, incluindo o Iraque desafeto e rico em hidrocarbonetos na lista de alvos da “guerra ao terror”. O resultado: caos, mortes e, com a saída dos EUA, a emergência do Estado Islâmico, ainda que ninguém vá chorar o fim da ditadura de Saddam Hussein.
A desagregação de tiranias na chamada Primavera Árabe, na virada dos anos 2010, adicionou tempero: o apoio ocidental a rebeldes na Líbia levou tanto à morte de um reabilitado Muammar Gaddafi quanto à falência do Estado. A Síria vive até hoje a tragédia conhecida.
Enquanto esse drama se desenrolava, a China crescia, apoiada pela aliança econômica com os EUA. Em 2000, o país respondia por cerca de 8% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Dez anos depois, estava em 14%, quando acelerou sua decolagem econômica após a crise de 2008.
Hoje, os chineses respondem por mais de 20% do PIB mundial. Ainda é uma economia menor do que a americana (US$ 20,5 trilhões dos EUA ante US$ 13,4 trilhões da China), mas quando a comparação é feita em paridade de poder de compra, supera Washington: 19% ante 16%.
Até 2012, quando Xi chegou ao poder, a regra era a da discrição política. O novo líder mudou tudo, centralizou poderes e se tornou figura central da ditadura. O gasto militar, ainda um quarto do americano, é o segundo do mundo e voltado a criar uma área de influência asiática, mas com ambições maiores.
Os EUA, assustados, criaram o “pivô da Ásia” de Barack Obama, mas o fato é que a realidade era mais complexa. Havia o Afeganistão, onde os combates principais cessaram em 2014, mas um Exército para construir a fim de pavimentar uma retirada, e a ressurreição do fantasma russo exorcizado em 1991.
Sob Vladimir Putin, no comando do país desde 1999 em encarnações múltiplas como presidente e premiê, a Rússia deixou para trás a entropia dos anos 1990 e, alimentada por ciclos de commodities, assumiu uma retórica agressiva.
Maior país do mundo, sua preocupação básica é manter coesão territorial. Assim, Putin buscou reativar alianças na sua periferia e barrar a expansão da Otan (aliança militar ocidental), o que fez na prática nas guerras na Geórgia (2008) e na Ucrânia (2014).
O russo passou a expandir sua ação cuidadosamente, como na intervenção que salvou a ditadura síria. Ansiosos, aliados europeus olhavam para os EUA por proteção, algo que os turbulentos anos de Donald Trump interromperam, mas que está de volta a curso sob Biden.
O errático republicano, por sua vez, escancarou a Guerra Fria 2.0 contra os chineses, dando ares de profeta a um outro historiador americano, Graham Allison, que em 2017 mostrou que em 16 embates entre potências emergentes (China agora) e estabelecidas (EUA), 12 acabaram em guerra nos últimos 500 anos.
Hoje, os interesses interligados que Biden e Xi expuseram em seu telefonema parecem evitar o pior, mas a escala da história é em décadas, e há atritos crescentes no mar do Sul da China, no estreito de Taiwan, nas fronteiras indo-chinesas.
Seja como for, o americano quer deixar para trás a “guerra ao terror”, que continuará na prática, assim como o terrorismo. O Talibã está de volta ao poder, mas agora a mira está em Pequim e, de forma lateral, na aliada chinesa Rússia e seu poderio militar respeitável.
Assim, a dança geopolítica segue em seu ritmo próprio, ainda que sempre sujeita a bólidos exógenos como que atingiu o mundo em 11 de setembro de 2001, deixando no caminho cerca de 800 mil mortos e trilhões de dólares em gastos.