O STF (Supremo Tribunal Federal) tem recorrido à chamada modulação de efeitos em julgamentos tributários para evitar que decisões gerem prejuízo ao governo.
A medida, contudo, tem sido criticada por estimular a criação de impostos ilegais e por gerar insegurança jurídica a investidores.
Nos últimos anos, em ao menos 11 processos a corte derrubou a cobrança de tributos bilionários, mas afirmou que as decisões só passariam a ter validade do momento em que foram tomadas em diante, sem exigir a devolução ao contribuinte dos impostos pagos com base em lei inconstitucional.
Assim, o Supremo abre margem para a criação de impostos que incrementam o caixa do governo mesmo sendo contrários à Constituição, porque depois o Judiciário desobriga o Estado de devolver o valor arrecadado.
O fenômeno passou a ser estudado no mundo acadêmico e ganhou o nome de inconstitucionalidade útil, que nada mais é do que a produção de normas sabidamente contrárias às regras na expectativa de, mais tarde, o Supremo anulá-las sem determinar a devolução do que já foi recolhido.
A primeira vez que o Supremo discutiu modular os efeitos de uma decisão para que ela só tivesse efeito dali para frente foi em 2007, no debate sobre a alíquota zero do IPI, mas não houve maioria nesse sentido.
Antes disso, o entendimento da corte era de que, se o tributo foi declarado ilegal, ele nunca poderia ter entrado em vigor e, portanto, o que foi cobrado com base nele deveria ser devolvido pelo governo.
No próximo dia 27, o Supremo irá julgar qual o marco temporal adequado a ser aplicado nas situações em que é necessário modular a decisão.
Atualmente, não há uma regra definida e já foram tomadas decisões em quatro sentidos diferentes sobre a partir de quando o resultado do julgamento passa a ter efeito: da publicação da ata da sessão, da publicação do acórdão, da data que iniciou ou da data que encerrou o julgamento.
Outro ponto criticado em relação às decisões desta natureza diz respeito ao fato de, em alguns casos, a corte definir que a decisão tomada pelo Supremo em determinado tema só deverá beneficiar contribuintes que já acionaram a Justiça para contestar aquele imposto em questão.
Isso aconteceu, por exemplo, na discussão sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Em março de 2017, a corte decidiu retirar o imposto do cálculo para pagamento das duas contribuições.
Quatro anos depois, em maio deste ano, a corte se reuniu para analisar o pedido da União para modular os efeitos da decisão a fim de evitar um rombo aos cofres públicos.
Os ministros atenderam em parte a solicitação do governo federal e definiram que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins só podia ser aplicada a partir de 2017, quando o Supremo julgou o tema.
Além disso, o STF decidiu que, antes desta data, a nova regra só poderia ser aplicada a quem já havia ingressado com ação judicial ou procedimento administrativo contestando a cobrança do imposto.
Esse tipo de decisão, na visão de especialistas, amplia a judicialização e vai na contramão de todo o esforço que o STF e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) têm feito para reduzir o volume processual do país, uma vez que beneficia apenas quem já tinha acionado o Judiciário.
Outro problema na atuação do tribunal na análise de processos com impacto financeiro que envolvem a legalidade de tributos é o fato de a corte deixar a análise do pedido de modulação de efeitos para o julgamento dos recursos contra a decisão que retirou do ordenamento jurídico determinado imposto.
Como tem sido comum a corte deixar para um segundo momento o debate sobre o marco temporal que determina a partir de quando determinada decisão terá validade, tribunais de todo o país têm deixado de aplicar entendimentos fixados pelo Supremo que deveriam ser vinculantes.
Isso aconteceu em diversos casos, inclusive no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que em muitas situações deixa de aplicar decisões do Supremo sob o argumento de que prefere aguardar a corte julgar recursos e definir a modulação antes de aplicar o entendimento da cúpula do Judiciário.
Fabio Goldshmidt, advogado tributarista que atua perante o STF, afirma que a primeira vez que a corte discutiu, mas negou a possibilidade de modular efeitos foi em 2007, em um processo no qual ele advogava e discutia a alíquota zero para o IPI.
Ele fez um levantamento que aponta que, desde então, em ao menos 11 julgamentos a corte decidiu em favor de jogar a decisão para frente.
Goldshmidt diz que a possibilidade de modulação de efeitos é “extremamente útil” para se garantir um ambiente de segurança jurídica. O mecanismo foi criado para evitar alterações bruscas no sistema em casos em que há mudança de jurisprudência.
No entanto, o advogado diz que é preocupante o fato de o Supremo ter usado a ferramenta cada vez mais.
“É como aquele remédio que, na dosagem errada, pode matar o paciente. É um antibiótico que, se eu usar todo dia, quando precisar mesmo dele não fará mais efeito”, compara.
Goldshmidt diz que o exemplo dado pelo Supremo na área também tem estimulado outros tribunais a agirem de maneira heterodoxa em relação à modulação de efeitos.
Recentemente, por exemplo, os Tribunais Regionais Federais da 1ª e da 2ª região decidiram aplicar à discussão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins o que o Supremo decidiu em relação à modulação de efeitos do ICMS nessa temática.
“A questão do ISS nunca foi julgada pelo Supremo e não há previsão legal para aplicar nessa situação o que foi decidido em julgamento sobre outro tema”, afirma.
A doutoranda em direito tributário na USP (Universidade de São Paulo) Raquel Alves critica o fato de o Supremo deixar para um segundo julgamento a discussão sobre a modulação de efeitos.
“Nesses casos, o instrumento que deveria ser usado em prol da segurança jurídica acaba gerando o efeito contrário, especialmente em relação às ações judiciais que são ajuizadas após a decisão de mérito e transitam em julgado antes do julgamento dos embargos”, diz.
Ela afirma que os processos apresentados à Justiça neste interregno entre os dois julgamentos têm levado ao aumento da judicialização e da sobrecarga ao Judiciário.
“Vem o STF e modula para determinar os efeitos a partir do julgamento no mérito. O que fazer nesses casos? Vai ter que ajuizar uma ação rescisória. No exemplo do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, a Fazenda está tentando reabrir vários processos no STJ justamente para discutir a modulação que o Supremo definiu quatro anos após se debruçar sobre o mérito”, afirma.
Em ao menos cinco casos o Supremo decidiu modular os efeitos da decisão no julgamento de recurso. Isso ocorreu, por exemplo, no debate relativo à incidência de ICMS sobre licenciamento de uso de software e na discussão sobre a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS.
Questionada, a assessoria do Supremo afirmou que não irá comentar as decisões da corte sobre o tema.