Déia Freitas, Fatou Ndiaye e Gabi de Pretas: veja a história de influenciadoras negras que são sucesso nas redes

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Ao se aproximar o mês de novembro, há uma agitação nas redes sociais em torno do dia da Consciência Negra. Empresas buscam especialistas e ativistas que falem sobre questões raciais para bancar palestras, eventos e muita publicidade que mostre ao público como são antirracistas.
Quem lida com esse debate 365 dias por ano questiona a estratégia.
Gabi Oliveira, 29, ou Gabi de Pretas, como se popularizou, explica que nunca criou conteúdo especial para a data comemorativa. Ela trata dessas questões o ano todo –com audiências invejáveis.
Ela está em dois canais no YouTube que somam mais de 25,5 milhões de visualizações desde que foram criados, um em 2015 e outro em 2021. No Instagram, tem mais de 500 mil seguidores. Gabi também mantém o podcast semanal Afetos, junto com a comunicadora Karina Vieira.
Influenciadora digital desde 2015 e empresária no ramo de criação de conteúdo desde 2017, ela conta que durante o mês de novembro os convites para tratar de questões raciais se intensificam e chegam sempre em cima da hora, apesar de ser algo que poderia ser planejado, diz ela. “Afinal, a consciência negra existe em todos os anos,” comenta.
Ao contrário do que ocorre com muitos jovens, ser influenciadora nunca foi um sonho para ela. Ao concluir a faculdade de Relações Públicas pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 2015, não conseguiu emprego. Decidiu, então, estudar para concurso público. Nas horas vagas, passou a compartilhar nas redes sociais suas opiniões sobre temas raciais.
Na época, a moradora de Niterói, no Rio de Janeiro, passava pela chamada transição capilar, um processo que consiste em abandonar procedimentos químicos feitos no cabelo e assumir os fios naturais. Por isso, havia pesquisado sobre o papel dos meios digitais na valorização da estética da mulher negra e percebeu movimentos afros que estavam se mobilizando na internet.
Ela diz que a ideia inicial era ampliar as conversas nos meios digitais, e não criar conteúdo. “Seria apenas um hobby ‘muito comprometido'”, ela diz. Mas, com o tempo, foi ganhando projeção e criando uma verdadeira rede de apoio.
“Minha relação com meus seguidores é muito boa, eu fiz uma verdadeira comunidade. As pessoas me mandam relatos e fazemos trocas. Sinto-me privilegiada por estar cercada de um grupo de pessoas tão legal.”
Um ano e meio depois, no final de 2016, Gabi recebeu sua primeira proposta de publicidade. Foi contratada para divulgar a estreia da série Raízes, no canal History Channel. A produção narra a trajetória do jovem negro Kunta Kintê, da África, que foi escravizado nos Estados Unidos. Na época, ela tinha cerca de 40 mil inscritos no canal do YouTube. Hoje, tem mais de 661 mil.
“Foi nesse momento em que percebi que eu era uma influenciadora”, afirma. No período inicial de ascensão, no entanto, sofreu ataques racistas e até de “haters”, dizendo que ela representava partidos de esquerda.
Hoje, ela sente confortável com os programas e mais segura até para realizar o sonho de se tornar mãe. A influenciadora iniciou o processo de adoção duas crianças –uma menina de 4 anos e um menino de 9 anos. Atualmente, ela está no estágio de convivência, que tem duração de 120 dias.
Sempre questionada pela decisão, ela afirma que nunca tentou engravidar. A vontade de adotar como uma pessoa solteira veio do desejo de ingressar no mundo da maternidade, não importando o caminho. Ela deu entrada no processo de adoção em 2019.
Gabi recebeu, nesta quarta (17), o prêmio da Academia iBest –oferecido anualmente aos mais relevantes profissionais e empresas do mercado digital do país. Foi eleita a Melhor do Brasil em Diversidade e Inclusão.
Em seu podcast Afetos, ela aborda o tema da saúde mental, tratando de assuntos como a relação com a morte, relações amorosas, solidão e espiritualidade. No quadro “Afetos Te Ajuda”, as pessoas enviam suas histórias, geralmente sobre problemas amorosos, e recebem comentários e conselhos.
Por causa de seu jeito espontâneo e da risada marcante ao contar os casos, Gabi foi acusada por um seguidor de não tratar com seriedade os relatos.
“Karina e eu temos vários episódios densos, como um que trata de luto, em que ela fala sobre como lidou com a morte da mãe. Por isso, buscamos tratar tudo com leveza, até nossos próprios problemas. Lidamos com essa crítica explicando isso para o público e pedindo àqueles que se sintam incomodados que não mandem histórias. Não há como mudar esse aspecto.”
Os episódios do “Afetos Te Ajuda” são feitos em parceria com a psicóloga e roteirista Déia Freitas, 46, criadora de outro podcast de sucesso: o Não Inviabilize, que conta histórias reais com o objetivo de entreter o ouvinte.
‘OI, GENTE, CHEGUEI’
O bordão de Déia é inconfundível para o fãs do programa: “Oi, gente, cheguei”. O Não Inviabilize é líder de audiência no Spotify dentre os podcasts brasileiros de ficção. É também o segundo mais ouvido do Brasil na plataforma de áudio. Perde apenas para o Mano a Mano, do cantor Mano Brown.
As histórias são recebidas por e-mail e passam pela cuidadosa curadoria de Déia, que não terceiriza o serviço para que nenhuma informação vaze. Às quintas, ela seleciona de 30 a 40 histórias, passa o número de seu WhatsApp, conversa com o remetente e, então, inicia-se o processo de preparação envolvendo roteiro, revisão, gravação, edição e lançamento do episódio.
Neste momento, Déia Freitas tem um acervo de mais de 4.000 histórias
A influenciadora, que vive em Santo André (SP), conta ser filha de um casal interracial. A mãe é negra e o pai é branco de ascendência portuguesa. Ela diz que a família do pai nunca aceitou a mãe por causa da cor e que, por ter nascido branca e a sua pele ter escurecido, também deixou de ser bem recebida. “Foi de alívio à tristeza”, diz.
Com a morte do pai, quando Déia tinha 12 anos, ela rompeu com a família e se sentiu melhor, mas afirma que continuava sofrendo com o racismo na escola pública em que estudava.
“Eu era chamada de encardida e, hoje, nem consigo usar mais essa palavra. Como eu era magra, também me chamavam de palito queimado. A situação só se resolveu quando uma prima minha bateu em um menino que falava essas coisas –mas aí fomos tachadas como as negras barraqueiras.”
Por ser tão marcante em sua trajetória, a roteirista dá muita importância às questões raciais. Para o mês da Consciência Negra, por exemplo, aceitou apenas um convite: um debate na Feira Preta, evento de cultura negra na América Latina. Diferente de Gabi Oliveira, Déia diz que as marcas não a chamam em outras épocas do ano. “Me chamem em dezembro, em janeiro”, conta.
No podcast Não Inviabilize, Déia tem regras ao tratar a questão racial nas histórias, que são modificadas e roteirizadas por ela para preservar o anonimato. Em vários episódios, ela oculta raça, classe e orientação sexual dos personagens. Apenas revela quando é um elemento importante.
“É uma escolha editorial. Por que eu falaria que uma pessoa vilã da história é negra? Ou que é gay, lésbica? Meu podcast não tem debate depois, se eu falar esses detalhes, vou perder o controle da narrativa. Eu evito militar quando não precisa.”
O Não Inviabilize é dividido em seis quadros: Amor nas Redes (histórias de amor), Picolé de Limão (ciladas do cotidiano), Luz Acesa (suspense e mistério), Mico Meu (engraçadas), Ficção da Realidade e, o mais recente, Patada, que fala sobre cuidado com pets e dialoga com o trabalho como protetora animal. Um novo quadro, Alarme, em breve estará no ar e abordará gatilhos emocionais.
Trabalha com Déia, atualmente, uma equipe de oito pessoas, envolvendo profissionais de edição, animação, redes sociais, agente e transcrição e revisão das histórias. Para sustentar essa cadeia de produção, ela conta com patrocínios e a recente estreia do quadro Não Inviabilize o Papo, no programa Papo de Segunda no GNT.
Outra fonte de recursos é uma plataforma de financiamento coletivo, o Apoia-se, na qual, a partir de R$ 10, ouvintes podem se tornar assinantes e ter acesso a conteúdos exclusivos. São mais de 12,7 mil apoiadores.
Déia afirma que fechou contrato para dois livros sobre o Não Inviabilize. Um deve ser lançado no meio do ano que vem. O podcast também vai virar uma série produzida por uma plataforma de streaming, que deve começar a ser gravada em 2022. Por motivos contratuais, ela não pode revelar mais detalhes sobre os projetos.
Apesar do sucesso e do alcance nas plataformas de áudio e nas redes sociais –são mais de 135 mil seguidores no Twitter, 70 mil no Instagram e 38,7 mil membros no grupo do Telegram–, Déia é tímida e não gosta de aparecer.
“Quando estreou o programa no Papo de Segunda, me arrependi, acho que é muita exposição e eu tenho vergonha. Sobre a série, estou com medo de como será. Tenho medo de ficar exposta”, diz ela.
‘SEMPRE A MAIS JOVEM DA SALA’
E se para Déia Freitas, a exposição assusta, Fatou Ndiaye, 16, sente-se confortável em falar com os mais de 111 mil seguidores no Instagram e 92 mil seguidores no Twitter. Ela diz que consegue preservar a saúde mental nas redes, pois separa a “Fatou oficial”, seu nome de usuário, da Fatou da vida real. Os pais têm acesso a todas as suas redes sociais.
A adolescente brasileira e senegalesa repercurtiu na mídia em maio de 2020, quando sofreu racismo no colégio onde estudava, no Rio de Janeiro, cidade onde mora. Desde então, tornou-se produtora de conteúdo digital, palestrante em escolas e universidades. Fundou, em junho deste ano, a consultoria em diversidade Afrika Academy.
Por ser jovem e negra, Fatou conta que enfrenta desafios por exercer seu ativismo e participar de tomada de decisões. “Há sempre um olhar de ‘o que essa menina está fazendo aqui?’. Sou sempre a mais jovem da sala, mas eu me orgulho disso. Tenho apenas 16 anos e já estou aqui.”
Sobre as propostas de parceria em decorrência do mês da Consciência Negra, ela afirma em tom de brincadeira que as marcas “se anteciparam” e começaram a chamá-la desde outubro. Ela diz que, apesar de falar sempre sobre racismo, também é convidada para eventos e parcerias com temas de educação e política.
Apesar do trabalho nas redes sociais, Fatou questiona o próprio título de influenciadora, pois acredita que trata-se de um peso grande e de muita responsabilidade. “Meu conteúdo não é sobre mim, e, sim, sobre o conhecimento de que eu posso falar.”
Em relação ao futuro, a adolescente pretende cursar engenharia de produção e não focar tanto na criação de conteúdo. No entanto, com a chegada próxima do metaverso –nova aposta das gigantes de tecnologia–, ela acredita que a persona virtual importará mais que a persona física.
“Não vai ser sobre produzir conteúdo ou não, mas sobre qual tipo de conteúdo você irá produzir.”