Mesmo após sucessivas elevações da Selic e aceleração do ciclo de alta de juros, as projeções do mercado para a inflação continuam subindo. Para o Banco Central, a tendência de alta das estimativas é gerada especialmente pelo risco fiscal, quando os agentes econômicos entendem que o desajuste das contas públicas é significativo.
A dificuldade do Banco Central em frear as expectativas põe em xeque a efetividade da política monetária, especialmente com uma inflação que não é de demanda -quando a economia está aquecida pelo consumo-, mas sim reflexo de alta nos custos.
Além disso, o peso do risco de deterioração das contas públicas na inflação reacendeu entre economistas discussões sobre a possibilidade de que o país entre em dominância fiscal, quando a política monetária depende do controle das contas públicas e da dívida para conter a inflação.
Nesse cenário, quando o BC eleva a taxa básica de juros, a dívida aumenta a ponto de gerar mais inflação.
São frequentes os ruídos em torno da política fiscal. Na última semana, dúvidas em relação ao custeio do novo programa social do governo, o Auxílio Brasil, e ao pagamento de precatórios (dívidas do governo na Justiça) provocaram alta volatilidade no mercado.
O quadro de instabilidade política e fiscal deve se agravar até as eleições de 2022, tornando o ambiente ainda mais desafiador para o BC.
Para a economista Marília Fontes, fundadora da casa de análises Nord Research, o país só entraria em dominância fiscal caso o teto de gastos, mecanismo criado para limitar os desembolsos do governo, fosse rompido.
“Acredito que se retirar o teto de gastos, o país entra quase que imediatamente em dominância fiscal, porque o prêmio de risco [valor adicionado nos juros pelo risco] deve aumentar muito no juro longo, a ponto de afetar a inflação”, avalia a especialista.
Para ela, o governo precisa gerar um gasto permanente relevante fora do teto para que isso ocorra. “O auxílio emergencial custou mais do que se estimava economizar com a reforma da Previdência, mas o mercado não penalizou porque entendeu que, mesmo sendo um gasto relevante, não seria permanente”, lembrou Fontes.
Segundo a ata da última reunião do Copom (Comitê de Política Monetária) do BC, publicada na terça-feira (10), dentro do cenário básico as expectativas para 2022 e para 2023 estariam alinhadas à meta.
“O Comitê ponderou que os riscos fiscais continuam implicando um viés de alta nas projeções. Essa assimetria no balanço de riscos afeta o grau apropriado de estímulo monetário, justificando assim uma trajetória para a política monetária mais contracionista [com juros mais altos] do que a utilizada no cenário básico”, justificou o documento.
Para 2021, há consenso no mercado e no BC de que a inflação deverá estourar a meta fixada pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), de 3,75% –com 1,5 ponto percentual de tolerância para cima e para baixo.
Hoje, o Copom já mira a inflação de 2022 e 2023, no chamado horizonte relevante, para quando o comitê entende que a política monetária pode fazer efeito, com metas de 3,5% e 3,25%, respectivamente.
De acordo com o boletim Focus, em que o BC divulga as expectativas do mercado, a expectativa é que este ano encerre com alta de 7,05% no índice de preços, acima do máximo definido para o ano, de 5,25%. Há um mês, os economistas esperavam 6,31%.
As projeções para 2022 também cresceram. No último Focus, a expectativa era de 3,90%, contra 3,75% há um mês. No primeiro relatório do ano, coletado em 8 de janeiro, o mercado esperava 3,34%.
Quando a inflação não fica dentro do intervalo determinado pelo CMN para o ano, o presidente do BC precisa escrever uma carta aberta ao presidente do conselho, que é o ministro da Economia, Paulo Guedes, para explicar os motivos.
Diante disso, na semana passada, o Copom elevou a Selic em 1 ponto percentual, maior alta em 18 anos. Os juros foram para 5,25% ao ano. Para a próxima reunião, em setembro, o Comitê indicou que fará nova alta na mesma magnitude.
Com a decisão, o BC acelerou o ritmo do ciclo de aperto monetário, que vinha sendo de alta de 0,75 ponto nos encontros anteriores.
O chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre e ex-diretor do BC, José Júlio Senna, contra-argumenta que as expectativas dentro do horizonte relevante, que deixa 2021 de fora, estão ancoradas, mas que o BC precisa fazer um esforço enorme para evitar que sejam desancoradas e saiam da meta.
“Em 2022 as expectativas estão ligeiramente acima da meta, o BC age agora para evitar que haja deterioração desse cenário. O problema é que para segurar as expectativas está sendo necessário um esforço muito grande de aumento de juros”, diz.
Para ele, o risco fiscal é importante dentro da inflação, mas há um componente novo agindo na aceleração de preços, que surgiu com a pandemia de Covid-19.
“A discussão em torno da inflação está ocorrendo no mundo inteiro e não sabemos quanto tempo vai durar, é difícil prever. Tivemos um choque duplo, de oferta, que afetou a cadeia produtiva, e de demanda, na pandemia o consumo foi desviado de serviços para bens”, explica.
O país passou por choques sucessivos -e alguns simultâneos- nos preços. Em pouco tempo houve alta em alimentos, impacto das commodities, além do encarecimento de combustíveis. Agora, a crise hídrica elevou o valor da energia elétrica e, junto com a retomada do setor de serviços, devem gerar mais inflação no curto prazo.
“Subir os juros não vai derrubar imediatamente preços impactados por choques [que não são de aumento de demanda], mas pode impedir que se propaguem por toda a economia”, analisa Senna.
O ex-diretor do BC afirma que, se o país estivesse em dominância fiscal, a política monetária perderia o efeito.
“O risco está presente, mas estamos longe disso. Sob dominância fiscal a política monetária não produz mais efeito sobre as expectativas. O esforço é grande, mas o BC está conseguindo manter e está empenhado”, destaca.
Na visão do economista-chefe da consultoria Análise Econômica, André Galhardo, a desancoragem de expectativas deriva de outros fatores, mas o BC costuma atribuir à questão fiscal com recorrência e quase que com exclusividade.
“O problema deriva também da questão fiscal, porque quem precifica é o próprio mercado, mas outros fatores, talvez até mais importantes, também causam elevação das expectativas, mas o BC tem abordado muito pouco”, afirma.
Galhardo diz que os componentes transitórios que exercem pressão sobre a inflação estão mais persistentes que o esperado inicialmente.
O economista diz acreditar que as eleições de 2022 podem ser um gatilho para que o país entre em dominância fiscal.
“Além de outras questões, uma possível desvalorização cambial [gerada pelas eleições] poderia gerar mais inflação e demandar uma resposta mais agressiva do BC, o que elevaria o custo da dívida. Com o aumento do prêmio de risco [desconfiança do mercado] sobre a disciplina fiscal, isso poderia trazer a dominância fiscal para a pauta do dia”, afirma.