SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A postura intervencionista do governo chinês em relação às empresas de tecnologia do país asiático, que se dá em um contexto de disputa de força hegemônica com os Estados Unidos, ainda deve provocar importantes mudanças na atual configuração do mercado financeiro global.
A avaliação de especialistas é a de que a China vem deixando cada dia mais claro que não irá aceitar um crescimento considerado excessivo de alguns negócios digitais que possam representar qualquer risco aos seus planos de longo prazo para a economia do gigante asiático em escala internacional.
O sinal mais recente nesse sentido veio na sexta-feira (3), após o Grupo Didi, conhecido como o “Uber chinês”, pressionado pelas autoridades chinesas, informar que vai deixar de ter cotação na Bolsa de Nova York.
Após ter realizado em junho a segunda maior abertura de capital de uma empresa chinesa nos EUA, as ações do Grupo Didi vieram ladeira abaixo desde então, com uma queda acumulada de 56,6% –apenas na sexta, as ações caíram 22,2%.
A estreia na Bolsa dos EUA foi ofuscada por uma investigação sobre cibersegurança do governo chinês, que estimula as grandes empresas de tecnologia do país a cotar as ações em seus mercados, como Hong Kong, Xangai, Shenzhen ou Pequim.
Depois de vários meses de pressão do governo, o golpe de misericórdia parece ter vindo dos Estados Unidos. A agência que regulamenta as atividades da Bolsa americana (SEC) adotou uma norma para poder retirar as empresas estrangeiras que não tenham uma auditoria autorizada, o que inclui todos os grupos chineses em Wall Street.
Poucas horas depois, a empresa Didi Chuxing anunciou a saída da Bolsa americana. “Após considerações cuidadosas, [a Didi] iniciará o processo de retirada da Bolsa de Nova York a partir de hoje e começará os preparativos para a cotação em Hong Kong”, afirmou a empresa em um comunicado.
Com 15 milhões de motoristas e quase 500 milhões de usuários, a Didi domina o mercado de aplicativos para transporte urbano privado na China. A empresa é dona da 99 no Brasil.
Segundo Ruy Alves, gestor de ações globais da Kinea, frente à postura bastante incisiva que tem sido adotada pela China nos últimos meses, a tendência é que, com o passar do tempo, a maior parte das grandes empresas chinesas de tecnologia que se listaram no mercado americano acabe migrando suas ações para a Bolsa de Hong Kong, a maior do mercado asiático.
“Acredito que seja um caminho bem possível de acontecer [a migração das ações para a Bolsa de Hong Kong], porque é, efetivamente, o único mecanismo que a China tem para lutar contra os EUA, que ainda tem uma dominância muito maior, tanto na área de tecnologia como em termos financeiros em escala global”, endossa Pedro Brites, professor e vice-coordenador do curso de RI (Relações Internacionais) da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Com base em fontes próximas ao caso, reportagem da Bloomberg apontou que a agência reguladora chinesa exigiu que os executivos da Didi retirassem o grupo da Bolsa de Nova York devido ao temor de vazamento de dados considerados sensíveis.
“A postura do governo chinês foi bastante impactante para o mercado, como podemos ver pela queda das ações, por se tratarem de empresas sólidas e muito grandes dentro dos seus setores, como a Didi”, diz Brites.
Alves, da Kinea, lembra que, ao levantar recursos e listar suas ações no mercado americano, as empresas chinesas passaram a ser alvo de pressão por parte de órgãos reguladores dos Estados Unidos, para que abram dados estratégicos armazenados em seus sistemas, o que naturalmente é visto de forma bastante negativa por Pequim.
“Não se discute abertamente na China a respeito da dominância do Partido Comunista, e alguns empresários do setor de tecnologia que começaram a ficar muito ricos, como o Jack Ma, passaram a questionar publicamente o Partido”, afirma Alves. “Ao cruzar essa linha, o governo chinês rapidamente lembra quais são os limites para dar um exemplo”, acrescenta.
O poder que big techs americanas como Google e Facebook alcançaram nos Estados Unidos será combatido a todo custo para que não se repita na mesma proporção em território chinês, prevê o especialista. “O governo chinês não quer de maneira nenhuma perder seu monopólio no monitoramento de dados e no controle de comportamento da população.”
Com as perspectivas de que a postura de caráter mais intervencionista do governo chinês vieram para ficar por um bom tempo, o gestor da Kinea diz que tem evitado exposição a empresas da China neste momento dentro das carteiras dos fundos multimercados.
“Embora tenhamos visto durante o governo Trump o embate entre EUA e China mais ligado ao setor de comércio, aquilo foi apenas um sintoma de uma competição bem mais profunda entre as duas potências, que agora tem se manifestado principalmente na área de tecnologia”, afirma Brites, da FGV.
Segundo ele, Didi e Alibaba são exemplos de empresas que conseguiram se aproveitar do próprio tamanho do mercado chinês para alcançar uma escala global, e que passaram a representar um risco para os planos de longo prazo da China para se tornar a maior e mais dominante economia do Planeta.
“A avaliação do governo parece ser a de que vale a pena o custo de pressionar as empresas chinesas agora, mesmo que tenham perdas ocasionais, mas assegurando que elas seguirão dentro do processo de inserção global da China”, afirma Brites.