Ao longo do século 21, o Brasil soma três períodos de inflação mais forte, com altas de dois dígitos no acumulado de 12 meses. São os intervalos de 2002 a 2003, de 2015 a 2016 e agora em 2021.
Embora tenham diferenças, esses períodos guardam pelo menos um elemento em comum: o impacto adicional causado na economia por indefinições ou crises políticas, apontam economistas.
As incertezas e as tensões nos rumos da política em Brasília atingem os preços especialmente porque afetam o câmbio, segundo analistas.
O efeito sobre a cotação da moeda ocorre porque um cenário de incertezas gera estresse no mercado financeiro e insegurança entre os investidores, incentivando estrangeiros -e mesmo brasileiros- a manterem suas reservas no exterior.
Um dólar elevado, na comparação com o real, encarece produtos importados e também incentiva a exportação de mercadorias nacionais com peso no consumo local. Os dois movimentos na balança comercial ajudam a empurrar a inflação para cima.
“Esses três momentos de inflação mais alta [2003, 2016 e 2021] são marcados por indefinições políticas que tiveram reflexos sobre o câmbio”, diz o economista Pedro Dutra Fonseca, professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
“Em 2002, o mercado via incertezas antes da eleição de Lula. Em 2016, houve o impeachment da ex-presidente Dilma. O que acontece agora é uma nova indefinição política, agravada pelo impasse do teto de gastos.”
Segundo economistas, é preciso lembrar que a inflação neste momento é um fenômeno global, desencadeado pelas restrições da pandemia.
A pressão sobre os preços é alimentada especialmente pela quebra na cadeia de suprimentos de vários produtos, pela reacomodação no valor de alguns serviços que foram interrompidos e também pela alta no consumo de matérias-primas.
A inflação nos Estados Unidos, por exemplo, alcançou o maior patamar em três décadas.
No entanto, o câmbio acentua o problema no Brasil, explica o economista Matheus Peçanha, pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
“Países com uma economia mais madura também sofrem com a inflação agora, mas o problema dos emergentes fica maior. Com qualquer incerteza, o capital foge deles”, aponta Peçanha.
No período de 12 meses até outubro, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulou alta de 10,67%, conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Carnes, soja e seus derivados, como o óleo de cozinha, milho e trigo, que estão na composição de vários alimentos industrializados, e minério de ferro, essencial na fabricação de inúmeros produtos, são exemplos de matérias-primas que reagem ao baque cambial e estão por trás da inflação de dois dígitos.
Entre os principais itens da lista de aumentos estão combustíveis, uma vez que os reajustes aplicados pela Petrobras acompanham a variação cambial e a cotação do petróleo.
Gasolina e óleo diesel têm alto poder de disseminar a inflação porque afetam os custos de frete de mercadorias. Passagens aéreas também fazem parte do setor de transportes, que reage ao câmbio por conta dos combustíveis.
Além disso, a energia elétrica ficou mais cara, porque foi preciso elevar o uso de térmicas em um ano marcado por seca e redução de produção nas hidrelétricas.
A taxa de câmbio, atualmente acima de R$ 5, ficou mais pressionada em meio à crise política que envolve o governo Jair Bolsonaro (sem partido).
Essa turbulência ganhou novo capítulo na reta final de outubro, após o Palácio do Planalto decidir driblar o teto de gastos para bancar o Auxílio Brasil, o substituto do Bolsa Família.
Parte dos economistas demonstra preocupação com o rumo das contas públicas, já que a incerteza fiscal pode afastar investidores do país, deixando o real desvalorizado frente ao dólar.
Conforme o IBGE, o IPCA de 10,67%, no acumulado de 12 meses até outubro, é o mais alto desde janeiro de 2016. À época, o índice oficial de inflação alcançou 10,71%.
Essa taxa foi registrada em meio à crise política enfrentada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que teve o processo de impeachment confirmado em agosto daquele ano.
Segundo analistas, a inflação ganhou força entre 2015 e 2016 devido a uma combinação de fatores. Em 2015, houve a pressão dos reajustes de preços administrados, como energia elétrica e gasolina.
Com a turbulência política, o dólar também ficou mais forte ante o real. Só em 2015, a moeda americana subiu quase 50%, para perto de R$ 4.
A situação respingou nos preços de itens como alimentos, também influenciados por condições climáticas adversas em parte do país.
Antes da crise econômica de 2015 e 2016, o outro grande choque inflacionário deste século ocorreu na passagem de 2002 para 2003, na esteira da campanha eleitoral que levaria Luiz Inácio Lula da Silva (PT) até a Presidência.
Em maio de 2003, com o petista já no Planalto, o IPCA chegou a registrar 17,24% em 12 meses, segundo IBGE. É a maior taxa acumulada neste século, desde 2001.
De novo, as tensões vindas da área política, e o reflexo no câmbio, ajudaram a empurrar os preços para cima.
Durante a campanha eleitoral de 2002, o mercado demonstrou nervosismo com a possibilidade de vitória de Lula e os rumos da economia nacional, o que levou o dólar a subir mais de 50% naquele ano.
Contudo, ao longo do primeiro mandato do petista, a moeda americana teve trégua, e a inflação perdeu força, voltando para um dígito.
“A tônica dos três choques de preços [2003, 2016 e 2021] é de uma inflação de custo, orientada em parte pela alta do câmbio”, diz Peçanha, do FGV Ibre.
“O câmbio gera um custo muito importante, porque tem efeito grande nos preços domésticos, seja por encarecer insumos ou até bens finais. É um impacto generalizado”, completa.
Alexandre Espirito Santo, economista da Órama e professor do Ibmec-RJ, vai na mesma linha.
Segundo ele, a tensão política e o reflexo no dólar provocam uma espécie de círculo vicioso na economia, ao afetar expectativas de investidores, taxa de câmbio, juros e, consequentemente, preços finais.
Isso, diz, foi sentido em maior ou menor proporção durante os choques inflacionários mais recentes.
Na visão do economista, a pressão sobre os preços no Brasil pode perder força em 2022 em caso de uma melhora no quadro hídrico e de uma eventual trégua dos preços do petróleo.
O cenário, contudo, permanece com motivos para preocupação, aponta o professor.
Nesse sentido, ele lembra que a alta de preços em 2021 também deve gerar reflexos em 2022, com a possibilidade de reajustes de contratos baseados na inflação acumulada nos meses anteriores.
“Temos muitos riscos, e a inércia inflacionária é uma ameaça enorme, difícil de quebrar. É preciso que o Banco Central esteja vigilante.”
Pedro Kislanov, gerente da pesquisa do IPCA, também avalia que os três períodos de inflação mais consistente deste século guardam semelhanças entre si. Entre elas, está o impacto cambial, que hoje atinge itens como combustíveis e alimentos.
Conforme os dados do IPCA, a menor taxa de inflação do século 21, no acumulado de 12 meses, foi registrada em maio de 2020: 1,88%.
À época, o Brasil atravessava a fase inicial da pandemia, que provocou uma série de restrições a atividades econômicas e abalou o consumo de bens e serviços não essenciais, lembra Kislanov.
O petróleo, por exemplo, despencou no mercado internacional após a chegada da Covid-19. A recuperação veio na sequência, com a reabertura da economia.