Eles pegaram comida do lixo, e Ministério Público quer que eles voltem para a cadeia

SÃO PAULO, SP, E PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – A Justiça do Rio Grande do Sul absolveu dois homens acusados pelo furto de alimentos vencidos que estavam no pátio de um supermercado da rede BIG no município de Uruguaiana. Ao todo, eles furtaram 50 fatias de queijo, 14 calabresas, 9 unidades de presunto e 5 peças de bacon.
O Ministério Público do Estado, porém, recorreu da absolvição em 30 de setembro e o caso agora vai para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Somados, os produtos valiam R$ 50 ?o caso foi em agosto de 2019? e foram devolvidos ao estabelecimento depois que a polícia prendeu os dois homens. Segundo a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, os alimentos estavam em uma área de descarte, onde seriam triturados.
Furtos de alimentos e de baixo valor são conhecidos como crimes famélicos, ligados à fome ?como o caso da mãe de cinco filhos que levou sem pagar pacotes de macarrão instantâneo, refrigerantes e suco em pó de um supermercado em São Paulo.
O juiz André Elias Atalla, da 1ª Vara Criminal de Uruguaiana, entendeu que, para o caso dos dois homens, cabia a aplicação do princípio da insignificância, quando o crime é considerado tão pequeno que a aplicação de uma punição é considerada desproporcional.
Para ele, o delito cometido pelos homens teve “mínima ofensividade”, “inexistência de periculosidade social” e “inexpressividade da suposta lesão”. Os dois homens, um de 34 e o outro de 38 anos na época do caso, chegaram a ser presos em agosto de 2019, mas estavam respondendo pelo crime em liberdade pelo menos desde julho de 2020.
Na decisão publicada em julho deste ano, o juiz André Elias Atalla afirma que o princípio da insignificância tem relação com a “envergadura da lesão”. Os antecedentes dos envolvidos seriam, portanto, fatos alheios.
O magistrado cita ainda um precedente do STF (Supremo Tribunal Federal), segundo o qual “é inadequado se apreciar os antecedentes do acusado para tipificar ou não a conduta.”
Os dois homens foram denunciados pela Promotoria pelos crimes de furto e corrupção de menores ?este último, por terem coagido um adolescente a praticar o furto, segundo o MP.
O BIG preferiu não comentar o caso, alegando que a ação trata-se de uma iniciativa do Ministério Público.
O registro policial do caso diz que a Brigada Militar, a Polícia Militar gaúcha, foi acionada depois que suspeitos entraram em uma área restrita do pátio do supermercado, sem autorização. Os policiais ressaltam que o local era setor de descarte de alimentos e gêneros alimentícios vencidos, e que a mercadoria apreendida estava fora da validade e seria descartada.
A Defensoria Pública assumiu o caso depois que os dois foram citados e não constituíram defesa no processo. Na delegacia, os homens permaneceram em silêncio e não há registro da versão deles para o ocorrido.
Um dos homens vive em situação de rua e o outro não tem contatos telefônicos, segundo o defensor público Marco Antonio Kaufmann, que assina as contrarrazões apresentadas ao Tribunal de Justiça na última segunda-feira (25), pedindo que se mantenha a decisão de primeira instância pela absolvição.
“O lixo não tem valor econômico nesse caso. É alimento vencido, é possível que estivesse estragado. Do ponto de vista jurídico, aquilo não é um bem que tenha algum valor, esse é o grande absurdo do processo”, afirmou Kaufmann à reportagem.
“No nosso entendimento, é uma verdadeira criminalização da pobreza, da miséria, do desespero das pessoas. É um fato que não envolve violência, grave ameaça contra pessoas, não prejudicou ninguém, o mercado, uma grande rede mundial, não teve nenhum prejuízo. O lixo foi, inclusive, devolvido”, disse.
Por meio de assessoria, o Ministério Público diz que recorreu da decisão no dia 30 de setembro deste ano “por discordar do argumento do juízo dado o contexto dos fatos”.
“Os réus, inclusive, apresentam condutas anteriores voltadas à prática de ilícitos, tendo um deles sido condenado por roubo”, diz a nota encaminhada à reportagem.
Segundo Kaufmann, apenas um dos homens possui condenação, por um caso de 2005, o que tecnicamente o tornaria réu primário pela lei.
Para Maíra Zapater, professora de Direito da Unifesp e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Direito Penal e Marcadores Sociais da Diferença, não há argumento jurídico para sustentar as acusações. Na visão de Zapater, chamar a ação de furto é um erro técnico.
“Para ser crime de furto tem que ser um bem com valor econômico, porque furto é um crime contra patrimônio, aquilo que está no lixo, por definição, deixou de ter valor econômico porque o proprietário se desfez. Depois vem o baixíssimo valor dos produtos, que daria para sustentar o princípio da insignificância, depois pelo fato de ser comida, que as pessoas estão evidentemente com fome, porque ninguém revira o lixo por gosto. São muitos argumentos jurídicos para dizer que esse caso é um absurdo”, argumenta.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada no último sábado (23) mostrou como o avanço da inflação e o desemprego em níveis ainda elevados têm levado mais gente a buscar alimentos em áreas de descarte de locais como o Mercado Municipal, no centro de São Paulo.
Outras marcas da situação de insegurança alimentar ?quando a pessoa não tem a certeza de que terá o que comer nas próximas 24 horas? já foram vistas em Fortaleza (CE), onde pessoas buscavam comida em um caminhão de lixo, no Rio de Janeiro (RJ), com o garimpo de pelancas e carcaças de carne, e em Cuiabá (MT), onde cidadãos foram filas na expectativa de conseguir doação de ossos de boi.
A inflação oficial, calculada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), chegou a 10,25% nos 12 meses até setembro. Os alimentos e bebidas acumulam avanço de 12,54% também em um ano.
No mesmo período, a variação de preços dos itens que formam a cesta básica já encosta em 16%, segundo estudo da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
Supermercados também passaram a reforçar procedimentos de segurança para evitar furtos. Uma rede chegou a ser multada pelo Procon-SP depois que algumas unidades passaram a entregar bandejas vazias a quem pedia carne porcionada no açougue. A embalagem de isopor era etiquetada e o cliente só poderia pegar o produto depois que a compra fosse concluída ?e paga.

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