Com R$ 110 milhões em contratos de fornecimento de energia no mercado livre, a comercializadora Argon Energia pediu recuperação judicial nesta quinta (5), alegando dificuldades para comprar os volumes que se comprometeu a entregar diante da disparada dos preços provocada pela crise hídrica.
O pedido reforça alertas sobre o risco de uma nova onda de calotes nesse mercado, onde geradores e consumidores negociam contratos bilaterais de fornecimento, com o cenário de preços altos, que deve se manter até o fim do ano.
A Argon não comenta o pedido, alegando confidencialidade, mas a reportagem apurou que entre os credores há outras comercializadoras, geradoras de energia e clientes como a Gol Linhas Aéreas, a Rio Preto Hotéis e a Rio JV Partners, da rede hoteleira Hyatt.
É a primeira empresa do segmento a recorrer à recuperação judicial após o início da crise hídrica, mas nas últimas semanas, compradores de energia no mercado livre começaram a receber cartas de outras comercializadoras informando dificuldades para honrar os contratos.
Os primeiros alertas levaram o diretor da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) Efraim Cruz a solicitar à CCEE (Câmara Comercializadora de Energia Elétrica) informações sobre os contratos de diversas comercializadoras.
Ele quer que a câmara responsável pela gestão do mercado repasse informações sobre os contratos de uma série de comercializadoras e alerte sobre eventuais indícios de possibilidade de inadimplência elevada que possam gerar risco ao mercado.
Comercializadoras são empresas que atuam como intermediárias no mercado de energia, comprando contratos de eletricidade de geradores para vender aos consumidores finais, como indústrias, shoppings ou redes de varejo, por exemplo.
Segundo os dados da CCEE, há hoje 421 empresas habilitadas para atuar como comercializadoras no mercado livre, que vem apresentando forte crescimento nos últimos anos, como alternativa das empresas para fugir do aumento na conta de luz.
O mercado funciona como uma bolsa de energia, na qual vendedores, compradores e intermediários negociam contratos de suprimento. Ao fim de cada mês, a CCEE calcula quanto foi o consumo e promove a liquidação dos contratos.
Quando uma empresa não consegue comprovar a entrega, é obrigada a recorrer ao mercado de curto prazo e pagar o PLD (preço de liquidação de diferenças). Com o recrudescimento da crise hídrica, o preço usado nessa liquidação disparou, atingindo o valor máximo de R$ 583,88 na última semana de junho.
“Algumas comercializadoras apostaram numa curva de preços que não se concretizou”, explica Ricardo Lima, que foi do conselho de administração da CCEE. “Apostaram que os preços não subiriam e, agora, se veem sem condições de comprar volumes suficientes para cumprir seus compromissos.”
A princípio, o prejuízo de eventuais calotes é do cliente, que terá que pagar a diferença na hora da liquidação. Mas em outros momentos semelhantes, parte do rombo caiu no colo de todos os participantes do mercado, já que vítimas de calotes judicializaram a questão.
Ainda não é possível identificar o tamanho do problema, que começará a surgir na liquidação de julho, concluída apenas em setembro. Mas os alertas levam o mercado a pedir pelo reforço nas regras prometido pela Aneel na última onda de calotes, em 2019.
A CCEE tem duas propostas de reforço. Uma delas eleva as exigências para a habilitação de novas comercializadoras, com o estabelecimento de patrimônio líquido mínimo e a proibição de que sócios que já tiveram empresas monitoradas por condutas atípicas abram novas comercializadoras.
A medida impediria uma prática conhecida no mercado como “Revalida”, na qual agentes que já tiveram problemas compram participação em alguma das diversas comercializadoras hoje inativas para voltar a operar.
A outra proposta melhora a avaliação de risco das operações, define condutas atípicas e estabelece sanções mais pesadas para agentes que não conseguirem cumprir seus compromissos.
“Um ambiente de contratação livre com agentes com capacidade de negociação, operações adimplentes e solvência financeira contribui inclusive para expansão do mercado livre e impulsiona a expansão econômica e atração de investimentos”, defende a câmara, em uma das notas técnicas.
O advogado Luis Souza, sócio no Souza, Mello e Torres Advogados, destaca que no mercado financeiro é necessário que as corretoras façam depósitos de garantias, que definirão sua capacidade de operar com ações e outros títulos.
“Isso não existe no setor elétrico, então tem comercializadoras que dizem ter lastro e vendem a energia, mas a CCEE só terá ideia no dia da liquidação”, afirma, defendendo a adoção de reforços de segurança.
O problema, ressalta, ocorre porque o sistema brasileiro é bastante dependente da energia hídrica, o que amplia o risco de volatilidade de preços. Em mercados mais térmicos, os riscos são menores.
Em nota enviada à reportagem, a CCEE disse que “tem acompanhado o cenário atual e atuará de acordo com a regulamentação vigente para mitigar possíveis impactos no mercado multilateral” e que o reforço na segurança é prioridade.
“Com o objetivo de aprimorar e reforçar a segurança de mercado, a instituição tem desenvolvido propostas para tornar os critérios de participação no mercado de energia mais rígidos e aplicar boas práticas do mercado financeiro, por exemplo, para garantir a liquidez”, afirmou.
Procurada, a Aneel não havia se manifestado sobre o assunto até a publicação deste texto. A Abraceel (Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia) disse na quarta que não conseguiria comentar o assunto esta semana por dificuldades de agenda.
Argon Energia disse que, “por questões de confidencialidade, não se posicionará sobre o assunto”.