EUA ganham com corrida armamentista causada pela guerra

O conflito entre Rússia e Ucrânia já movimenta o mercado militar mundial, devido à insegurança na Europa e à contínua ascensão da China na Ásia

 A guerra da Rússia de Vladimir Putin na Ucrânia já movimenta o mercado militar mundial, que se prepara para uma nova corrida armamentista devido à insegurança na Europa e à contínua ascensão da China na Ásia. Os Estados Unidos se posicionam como os principais beneficiários do processo.

Washington é a maior vendedora de armas do mundo, com 39% do mercado entre 2017 a 2021, segundo o Sipri (Instituto Internacional de Pesquisas da Paz de Estocolmo). Moscou, a segunda, com 19%.

A guerra levou o Ocidente e aliados como Japão e Austrália a impor sanções econômicas contra Putin, limitando sua capacidade de fazer transações no sistema internacional. Com o dólar como arma, EUA e Europa evitam o risco de uma Terceira Guerra Mundial inerente a uma ação militar contra a Rússia.

Contratos russos em curso e negociações futuras entram em xeque a partir de agora. Na quarta (16), os EUA anunciaram o fornecimento de versões modernizadas do caça de superioridade aérea F-15 ao Egito.

Ocorre que o país árabe já havia encomendado à Rússia 24 aeronaves para a mesma função, o poderoso Sukhoi Su-35S, que fez sua estreia em combate na Ucrânia. O negócio foi anunciado em US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões, no câmbio da sexta, 18), e há relatos de que cinco aviões já haviam sido entregues.

O Egito é o terceiro maior comprador de armas russas, com 13% de suas entregas. O país é um fenômeno curioso, tendo chegado ao terceiro lugar no ranking geral de gastos militares, com um aumento de 73% sobre suas compras de 2012 a 2016. Para especialistas, quem banca a empobrecida ditadura são os aliados Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, interessados em manter um flanco forte a oeste.

No começo do ano, com a crise ucraniana em ebulição, surgiram rumores de que o Cairo desistiria do negócio. Desde 2017, quem faz negócios militares com o Kremlin corre o risco de ser afetado por restrições de crédito nos EUA, entre outras penalidades impostas devido à anexação da Crimeia, em 2014.

Esse contexto já havia tirado o Su-35S de uma licitação na Indonésia, tradicional usuária de material bélico russo na Ásia, onde Moscou possui vários clientes. O país acabou anunciando neste ano uma compra no valor de US$ 22 bilhões (R$ 110 bilhões) de caças F-15 e modelos franceses Rafale.

A mesma dúvida se aplica à Turquia, que havia anunciado um aumento da cooperação militar com Moscou depois de comprar sistemas antiaéreos S-400, os melhores do mercado. Como membro da Otan, a aliança militar ocidental, Ancara deve deixar os planos de lado. O país, por sua vez, deve se beneficiar pela propaganda do desempenho de seus drone Bayratktar-TB2 na Ucrânia, depois de bem-sucedidos na guerra azeri-armênia de 2020 e na Líbia. Deve ficar para as calendas gregas o projeto do novo caça furtivo ao radar da Sukhoi, o Checkmate, que dependia de interesse externo.

Há uma compensação para a situação russa, que é o peso no seu “market share” bélico de dois países que se recusaram a criticar a invasão da Ucrânia: a aliada China e a amigável Índia.

Eles são os maiores compradores de armas russas: 28% delas vão para Nova Déli, e 21%, para Pequim. A relação com a Índia remonta aos tempos soviéticos e é marca da independência do país, que tem fortes laços com os EUA no grupo anti-China Quad e acaba de comprar jatos franceses e sistemas israelenses.

“A questão é que os indianos agora poderão se perguntar como serão os pagamentos daqui para a frente”, afirma Pieter Wezeman, pesquisador-sênior do Sipri. A maior dúvida é sobre a compra de baterias do S-400, encomendadas por US$ 5,4 bilhões (R$ 27 bilhões) em 2018 pelo país.

As fatias de mercado apontadas pelo Sipri não dizem respeito ao valor em dólar auferido pelos vendedores, mas a um índice mais complexo, que inclui o volume de vendas e o valor militar dos produtos.

Em ganho bruto, os Estados Unidos são líderes incontestes: venderam US$ 138 bilhões (R$ 690 bilhões) em 2021, ante US$ 15 bilhões (R$ 75 bilhões) dos russos.

Os dados variam muito porque não há métrica unificada. Segundo o Sipri, em 2020 as cem maiores empresas do setor no mundo venderam US$ 531 bilhões (R$ 2,6 trilhões), mas o valor pode ser bem maior.

A insegurança europeia com a invasão da Ucrânia e a contínua percepção de risco no Indo-Pacífico colocam o mundo no caminho de uma corrida armamentista. “Podemos esperar esse aumento, é algo que se verá ao longo de uma década, porque vendas militares levam tempo”, afirma Wezeman. “Se vocês no Brasil, no ambiente pacífico em que vivem, têm preocupação em ter submarinos, imagine na Europa hoje.”

A participação brasileira no mercado internacional, no qual já foi um dos dez maiores atores nos anos 1980, hoje é mínima. No ranking do Sipri, o país ocupa o 21º lugar entre os exportadores e o 33º entre os importadores –aí entram os submarinos e os helicópteros do acordo militar de 2009 com a França e o caça sueco Gripen, em introdução na FAB (Força Aérea Brasileira).

O impacto mais imediato da crise para o Brasil é a dificuldade, revelada pela Folha, de levar adiante a cooperação com Moscou na tecnologia para o combustível e o reator de seu futuro submarino nuclear.

No mais, a FAB havia desativado pouco antes da guerra o único esquadrão de aeronaves russas que já teve, de 12 helicópteros Mi-35 baseados em Porto Velho (RO). “Apesar das dificuldades logísticas, o fator decisivo foi o aspecto operacional”, diz o comandante da Força, Carlos de Almeida Baptista Júnior.

Ele descarta relação com o conflito e afirma que não haveria impacto significativo das sanções porque a manutenção dos helicópteros era feita por uma empresa brasileira capacitada havia dois anos pela Russian Helicopters. A questão é que o aparelho é caro de operar e não prioritário –em dez anos, cada aparelho voou em média 3 minutos por dia.

A demanda europeia poderá favorecer a Embraer, que já vendeu seu cargueiro médio KC-390 para Portugal e Hungria, ambos membros da Otan. Ela já está encarnada no anúncio alemão de triplicar seu orçamento militar de 2022 de forma emergencial, atingindo EUR 100 bilhões (R$ 553 bilhões), devido à guerra.

Com isso, os americanos se deram bem. Berlim anunciou que irá comprar 35 de seus caças de quinta geração F-35. Além disso, outros 15 caças europeus Eurofighter Typhoon e novos sistemas antitanque e antiaéreos americanos deverão ser comprados, e Washington deverá levar uma concorrência para fornecer US$ 4 bilhões (R$ 20 bilhões) em helicópteros pesados.

A Polônia, país mais agastado com a crise ucraniana por sua desavença histórica com os russos e o recebimento de quase 2 milhões dos atuais 3,3 milhões de refugiados do país vizinho até aqui, anunciou que vai encomendar drones pesados de ataque americanos Reaper.

“O impacto da guerra no mercado deve ser maior para a Rússia. De forma mais ampla, alguns países estão revisando suas presunções sobre necessidade de gasto militar”, afirmou o especialista em defesa aeroespacial Douglas Barrie, do IISS (Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres).

O IISS lançou pouco antes da guerra o seu Balanço Militar, obra anual de referência sobre gastos militares –que incluem também despesa com pessoal e investimentos. Os EUA são soberanos, com US$ 754 bilhões (R$ 3,8 trilhões) gastos em 2021, quase equivalente aos cerca de US$ 800 bilhões (R$ 4 trilhões) dos 14 próximos do ranking e mais que o dobro dos US$ 360 bilhões (R$ 1,8 trilhão) do resto do mundo.

A Rússia figura em quinto lugar, com US$ 62,2 bilhões (R$ 311 bilhões), mas o número real é maior porque o custo de produção é menor no país. No ranking geral, o Brasil caiu da 13ª para a 16ª posição de 2020 para 2021, com US$ 21,8 bilhões gastos (R$ 109 bilhões) –por aqui, 80% fica com pessoal ativo e inativo.

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