Ex-presidente da GM quer salvar indústrias no Brasil após conhecer dificuldades do setor

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Carlos Zarlenga está de volta à indústria, 40 dias após surpreender o mercado ao deixar a presidência da General Motors na América do Sul. Ou melhor, está de volta às indústrias, no plural.
O executivo trocou um dos cargos mais ambicionados no mundo corporativo pelo desejo de permanecer no Brasil -seu próximo passo na montadora certamente seria em outro país- e também pela vontade de ser sócio de um negócio focado em sustentabilidade.
Ele agora é cofundador da Qell Latam Partners, uma plataforma de investimento voltada a setores industriais, com destaque para o automotivo.
Um dos objetivos é promover aquisições e recuperar empresas com problemas de rentabilidade, algo que Zarlenga conhece bem.
“Falo das dificuldades da indústria nacional há bastante tempo”, afirma o novo empreendedor, que expôs os entraves ao longo de sua gestão à frente da GM. “Os investimentos feitos nas últimas décadas em diferentes empresas não geraram o retorno esperado.”
O momento mais agudo em seus cinco anos à frente da montadora ocorreu em janeiro de 2019, quando Zarlenga assinou um memorando enviado a funcionários expondo a situação complicada da empresa no Brasil.
Na época, após três anos de fortes perdas, a presidente global da GM, Mary Barra, mencionou a possibilidade de a montadora sair do Brasil.
Os anos passaram, a empresa ficou, mas o acúmulo de crises gerou outras perdas no setor. Entre 2020 e 2021, a Ford fechou suas fábricas no país e a Mercedes encerrou a produção de carros de passeio em Iracemápolis (interior de São Paulo).
A visão do negócio de Zarlenga é evitar que soluções traumáticas como essas ocorram na América Latina, em especial no Brasil.
“Se olharmos as projeções até 2030, vemos que apontam para um crescimento de 5% ao ano no país. Mas o que tem acontecido? O que pega mais, na verdade, é a volatilidade, tanto do câmbio como do volume”, afirma o executivo.
Para Zarlenga, o fato de 80% das indústrias serem multinacionais cria desafios diante das necessidades do Brasil, que necessita de decisões e investimentos diferentes dos tomados a nível global.
“Nos EUA, na China e na Europa, a eletrificação vai estar em 60% dos veículos vendidos em 2030. Para nossa região, o consenso é que será entre 15% e 20%, a taxa de adoção vai ser bem mais lenta.”
Esse gap entre o que acontece nos mercados mais robustos e a realidade dos trópicos é visto como uma janela de negócio pela Qell. “Neste momento, o que surge é uma grande oportunidade para empresas que têm dúvidas sobre continuar no Brasil”, diz Zarlenga.
“A primeira coisa é focar em desenvolver produtos que sejam viáveis na América do Sul, não só trazer produtos de fora e tentar adaptar. É necessário aproveitar a ociosidade, gerar mais trabalho, isso é o que tentaremos fazer para entrar em um ciclo virtuoso.”
Como a estratégia é pautada em sustentabilidade, a análise do que é viável passa pelo maior uso do etanol como combustível.
“O etanol tem grande potencial, não tenho dívida, ainda mais no Brasil. Tudo o que precisamos já existe, e podemos fazer mais. Se olharmos para a performance do Brasil em emissões, o país está em um patamar muito bom”, afirma Zarlenga.
A Qell tem sede em São Francisco, Califórnia. Seus fundadores são Barry Engle e Sam Gabbita, que, além de captar US$ 830 milhões nos últimos meses, promoveram uma operação de fusão de US$ 3 bilhões com a aeroespacial Lilium Air Mobility. Em agosto, essa empresa anunciou uma aliança de US$ 1 bilhão com a companhia aérea brasileira Azul para a utilização de EVTOLs (aeronaves de aterrissagem e decolagem verticais).
Ou seja, há cifras bilionárias na mesa, e esse dinheiro será utilizado em aquisições focadas no setor automotivo. E não é apenas o nome de Carlos Zarlenga que já é conhecido no setor. Engle, que é também o presidente do conselho de administração da divisão latino-americana da Qell, atua há 30 anos nessa indústria.
Ele esteve à frente da GM North America e também cuidou da divisão internacional da montadora, acumulando o cargo de presidente da empresa na América do Sul a partir de 2015. Em 2019, essa função foi passada para Zarlenga, que naquele momento presidia a marca no Brasil.
Portanto, basta juntar os pontos para entender o que aconteceu. Engle deixou a GM em 2020 para criar a Qell, já com o pensamento de adquirir e desenvolver empresas relacionadas à indústria automotiva e mantendo o foco na sustentabilidade.
O negócio cresceu de forma vultosa e, para se expandir na América Latina, seria necessário um nome que conhecesse as especificidades desse mercado -e Zarlenga já tinha mostrado suas competências ao longo dos anos de trabalho conjunto na montadora americana.
Em nota, Engle diz que a atual fraqueza macroeconômica na América Latina, exacerbada pela pandemia global, levou à redução dos investimentos, menos empregos e menos conteúdo local.
“Contudo estamos otimistas quanto às perspectivas econômicas futuras da região, vemos isto como um ponto de entrada interessante para os investidores e acreditamos que existe uma oportunidade de reformular e reforçar o setor automotivo local”, diz o texto assinado pelo executivo americano.
Zarlenga acreditou no projeto e também deixou a montadora para trás, mas sem rancores. “A GM é uma empresa muito boa, só tenho coisas boas para falar, deixei muitos amigos por lá.”