BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – “Primeiro foi o medo da morte. Da minha morte, do meu pai, da minha mulher e dos meus filhos. Depois me assustei com a diferença de conduta na minha própria família: uns estavam mais relaxados com o distanciamento social, outros, como eu, mais rigorosos. Ter que lidar com a tristeza dos meus filhos nesta fase também não foi moleza”.
“Do ponto de vista profissional, parece que todos enlouqueceram! Falam em exaustão, choram, acham que tudo é responsabilidade da empresa. Parei de fazer exercícios, passei a comer mais, a beber mais… Enfim, tempos muito difíceis”.
“Eu resisti a procurar um especialista. Depois falei sobre o que estava sentindo com uma pessoa que prestava atendimento na empresa. Ela me ajudou muito. Percebi que, se não buscasse uma ajuda especializada, iria quebrar. Quase quebrei. Cheguei muito perto”.
“Toda essa situação me fez dar mais valor à vida, ao meu autoconhecimento e compreender meus limites. Não vou conseguir salvar o mundo, mas minha parte eu tenho que fazer. Compreendi que os ataques de raiva que eu tinha com o meu chefe não eram para ele. Eram para a minha vida. Estava insatisfeito com o meu casamento, com a dependência que a minha mulher sempre teve de mim. Eu sempre precisei ser o forte… Cansei”.
“Quase separei, mas ainda não tive coragem. A família é muito importante para mim, mas não está fácil sustentar o casamento. A pandemia nos colocou convivendo de outra forma, com outra intensidade. Eu não estava preparado para isso”.
“Essa doença acabou pegando meu pai, não sei como. Ele estava dentro de casa, superprotegido e se foi. Uma dor sem tamanho”.
O relato acima de Jorge (nome fictício), 56 anos, vice-presidente de uma grande rede de varejo, que chora copiosamente ao falar do pai, prova que o processo de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico relacionados ao trabalho, o burnout, também chegou ao alto escalão durante a pandemia.
Pesquisa da doutora em psicologia Betânia Tanure de Barros, da BTA Associados, especialista em cultura organizacional, feita há cerca de um mês com mil executivos em posições de comando (presidentes, vice-presidentes, conselheiros, diretores) apontou que 88% nunca passaram por uma crise tão forte na vida como a atual. Mais da metade deles (58%) têm muito medo de morrer. Já 42% decidiram se separar do cônjuge ou estão pensando seriamente no assunto.
“Nós estamos vivendo quatro crises simultâneas”, diz Betânia. “Econômico-financeira, sanitária, antropológica e afetiva”. A pandemia que gerou impactos na economia afetou o nosso cotidiano, a maneira como nos relacionamos e a nossa visão de mundo, afirma a especialista. “Isso conta para todos, não importa se você mora em 30 ou em 300 metros quadrados”, diz ela.
Os líderes sempre ocuparam esta posição porque conseguiam enxergar um horizonte e entregar respostas, dar um direcionamento -seja nos negócios, seja na família. Mas quando um momento de dúvidas generalizadas chega, como o atual, este líder se vê sem norte, sem chão, e precisa compreender que também é falível e vulnerável, afirma Betânia.
“Os executivos estão vivendo em um nível de exaustão muito relevante”, diz. “Os líderes recebem toda a frustração dos subordinados e se sentem angustiados e deprimidos, porque não foram treinados a lidar com isso, ao mesmo tempo em que eles também se sentem assim”.
Aos olhos do mundo, afirma a especialista, a questão fica reduzida ao excesso de trabalho, mas a realidade vai muito além disso.
“Não é algo que se resolve com um dia de folga, mas com a percepção de que os líderes são gente de carne e osso, não estão acima do bem e do mal, têm medo e dúvidas sobre o futuro”.
Foi o que aconteceu com Patrícia (nome fictício), 47 anos, ex-diretora de recursos humanos de uma grande montadora. “Em todo esse tempo, eu mantive para mim muitas dores”, diz ela.
“Nesta vida executiva você sempre tem que dar respostas, mostrar o caminho. Pedir ajuda e dizer que não sabe ou que não consegue é considerado fraqueza. Ninguém quer um líder fraco”.
Casada e mãe de duas meninas, de 12 e 15 anos, ela teve que conciliar as rotinas da casa, do ensino remoto das filhas e de 12 horas diárias de trabalho, muitas vezes incluindo o fim de semana. Insônia e ansiedade passaram a ser sintomas frequentes, assim como uma dormência insistente no braço esquerdo.
“Foi a pior crise da minha vida”, diz ela, que deixou a montadora há algumas semanas, para assumir um novo cargo em uma empresa de bens de consumo.
“Saber que havia mais de 20 mil pessoas cujo destino dependia em parte de mim, das soluções que eu ajudasse a encontrar. Mas eu não sabia até onde essa crise iria durar, quanto tempo a empresa poderia sobreviver, se eu iria ficar desempregada, morando em uma cidade como São Paulo, em que a violência poderia explodir”.
Quando precisou voltar a viajar pela empresa, ela teve muito medo de se contaminar. “Ficava pensando como iriam ficar as minhas filhas se algo acontecesse comigo”, diz. Para Patrícia, uma das coisas mais doloridas desta fase foi constatar a sua ausência como mãe.
“A vida corporativa me consumia de uma maneira intensa, muitas viagens, muitas reuniões. Sempre foi assim, desde que eu saí da licença maternidade”, diz. “Eu não gosto de falar sobre ‘prós’ nesta pandemia, porque é um período sofrido demais, mas agora eu tive a oportunidade de viver a rotina das minhas filhas. Continuo amando a minha carreira e quero novos desafios, mas agora vou pensar em como fazer isso, para que a vida pessoal e profissional seja equilibrada de verdade e eu não me sinta mais culpada”.
A pressão de tomar decisões que teriam impacto sobre o destino de muitas famílias também pesou para Jean Carlo Nogueira, 38 anos, diretor executivo de gente e cultura da Gol. “A indústria da aviação civil foi uma das mais afetadas pela crise: de um dia para o outro, o nosso número de voos diários passou de 900 para 50”, diz ele, referindo-se a abril de 2020.
A Gol fez negociações sindicais para redução de salários e jornadas e abriu um plano de demissão voluntária (PDV). “Tomamos a decisão de não demitir, entramos na crise pensando que ela iria durar 90 dias”, afirma o executivo. “Mas a crise foi perdurando e tínhamos que dar respostas a 16 mil funcionários, 16 mil famílias”, diz ele.
Cerca de mil colaboradores aderiram ao PDV.
Nogueira passou a ter crises de insônia. “Acordava às 2h da manhã e não conseguia mais dormir”, diz. Por morar perto da sede da Gol, na zona sul de São Paulo, tomou a decisão de continuar a trabalhar presencialmente na companhia –quando todo o seu time estava em home office. O presidente e os demais diretores fizeram o mesmo.
“Por vezes eu olhava para os lados e chorava, vendo tudo vazio, um departamento onde antes trabalhavam 150 pessoas, uma sede com 1.500 pessoas. Era deprimente. Ficava pensando quando tudo isso iria passar”, diz ele.
“É importante tirar essa capa de super-herói que o líder veste, sabe? Saber que eu não tenho que ter todas as respostas, porque esta é uma crise que não está nos manuais”.
Para Nogueira, o fato de seguir trabalhando na empresa ajudou a preservar a relação com a esposa e os dois filhos, de 5 e 11 anos. “Minha mulher decidiu, antes mesmo da pandemia, parar de trabalhar e se dedicar aos nossos filhos. Ela foi incrível, minha família foi um alicerce que me ajudou a enfrentar esta fase. Mas vi muitos casamentos acabarem, inclusive separações não amigáveis”.
Por conta de uma experiência pessoal, o executivo diz não ter tido medo da morte. “Meu filho caçula nasceu prematuro, em dezembro de 2015”, diz. “Um problema no intestino o fez permanecer cinco meses no hospital e passar por cinco cirurgias. A cada intervenção, sabia que corria o risco de perdê-lo”.
Ter que lidar com a iminência da morte do recém-nascido foi o ápice do seu sofrimento, diz ele. “De certa forma, fiquei calejado para o que veio depois. Não temia morrer, mas sim perder as pessoas que eu amo”, diz Nogueira, que também afirma ter se abalado com tragédias sociais deste período – como o ataque à creche de Saudades (SC) e a morte do ator Paulo Gustavo.
A psicóloga Betânia Tanure diz que é fundamental que cada um encontre dentro de si os mecanismos psíquicos para sobreviver à pandemia. “Muitos líderes até o início da pandemia achavam que eram invencíveis. Mas descobriram que a mortalidade faz parte da vida”, diz ela.
Nogueira, que não fazia exercícios, começou a correr todos os dias de manhã e ir a pé para o trabalho, o que lhe garantiu ânimo novo. Já Patrícia tentou, sem sucesso, medicamentos para contornar a dormência no braço esquerdo -sintoma que só acabou depois que a yoga passou a ser uma prática diária. Jorge, por sua vez, deu início a terapia para aprender a lidar com suas frustrações e limitações.
“O processo de autoconhecimento nunca foi tão importante: é preciso reconhecer, sim, seus pontos fortes e diminuir os pontos cegos, aqueles em que você não reconhece que tem um problema”, afirma Betânia.
Cuidar de si é fundamental não só para o indivíduo, mas para o futuro das organizações, diz ela. “A competitividade de uma empresa está na paixão das pessoas pelo que fazem”, afirma.
“Um líder que não está bem consigo mesmo não consegue engajar a equipe. E estamos vivendo um momento em que as pessoas têm todas as desculpas verdadeiras para não desempenhar bem o seu papel”.