O debate pela regularização do trabalhador que atua em plataformas digitais, como Uber, iFood, Rappi, 99 e Loggi, ganhou novo fôlego. Numa frente, a FecomercioSP preparou uma minuta de projeto de lei sobre o tema. Em paralelo, o Governo Federal avalia a criação de um grupo de trabalho para tratar do assunto, dentro do Ministério do Trabalho e Emprego, recriado nesta semana pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A proposta da federação, que será apresentada a parlamentares com a expectativa de que seja encaminhada ao Congresso, prevê a obrigatoriedade de que o trabalhador se formalize como MEI (Microempreendedor Individual) ou faça contribuições para a Previdência como autônomo para poder oferecer serviços a partir delas.
A minuta também inclui na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) a previsão de que o regulamento não diz respeito ao trabalhador que obtém serviços a partir das plataformas digitais.
O texto foi desenvolvido pelo Conselho de Emprego e Relações do Trabalho, presidido pelo sociólogo José Pastore, em conjunto com o Conselho de Comércio Eletrônico.
Durante abertura de evento nesta quinta-feira (29) que discutiu as relações de trabalho em plataformas digitais, Pastore afirmou que o trabalhador do setor não tem um emprego que possa ser enquadrado na CLT, pois sua relação com as empresas não pressupõe jornada de trabalho, pessoalidade ou vínculo a uma só empresa, entre outros pré-requisitos.
Por outro lado, o trabalhador que atua nesse mercado precisa de proteções, desafio enfrentado por diversos países mundo afora, disse.
A advogada e desembargadora federal do trabalho aposentada Maria Cristina Matioli, que coordenou a elaboração da minuta de projeto, diz que o texto apresentado buscou aproveitar as possibilidades que a legislação já oferece, em vez de criar novas figuras jurídicas.
No mesmo evento, Bruno Bianco, secretário-executivo do Ministério do Trabalho, disse que o governo está criando um grupo para tratar do trabalho em plataformas digitais.
A meta é chegar a uma proposta simples, que proteja os trabalhadores e dê segurança jurídica para as empresas, disse Bianco. “Faremos isso com a maior cautela possível para proteger os trabalhadores e as empresas e não inviabilizar a tecnologia.”
Questionado sobre como funcionará e quais os objetivos do grupo, a pasta disse que ainda é uma ideia em estudo e, por isso, não comentaria.
O iFood vem se posicionando nas últimas semanas em defesa de uma regulação do trabalho via plataformas digitais.
À reportagem, João Sabino, diretor de políticas públicas do iFood, defendeu a criação de um piso mínimo para o trabalho do entregador que não seja menor que o valor por hora do salário mínimo.
Sabino também defendeu um sistema de recolhimento de contribuições para a Previdência que somasse a renda do trabalhador em diferentes plataformas, para que o valor dos benefícios a que ele terá direito seja proporcional a seus ganhos, e maior transparência na relação com os entregadores em questões como exclusão de algum deles do serviço.
Sabino diz que é preciso deixar a ideia de que o entregador é um parceiro empreendedor, ele deve passar a ser tratado como trabalhador.
“Estamos falando aqui de trabalhadores com especificidades bastante claras que impedem a aplicação da CLT, mas que precisam de seguridade social e outros direitos.”
Ainda não há consenso no setor a respeito de qual seria a proposta ideal.
Vitor Magnani, que preside o Conselho de Comércio Eletrônico da FecomercioSPe e também a associação ABO2O, que reúne 150 plataformas digitais, afirmou, no evento da FecomercioSP, que é preciso ouvir os trabalhadores, a partir de seus sindicatos e associações, para entender quais suas reivindicações.
“Não é um diálogo simples. Não podemos ter urgência, sob pena de cometer vários erros e impedir o desenvolvimento de um setor que está no minuto um do primeiro tempo.”
Magnani também disse que as empresas não devem cair no erro de fazer populismo corporativo, pedindo mudanças sem aplicar as normas que já estão disponíveis.
Ele defendeu que, mesmo antes de qualquer mudança na lei, as empresas adotem imediatamente a figura do MEI como obrigatória para o trabalho em suas plataformas e criem fundos próprios para dar garantias para os prestadores de serviço em casos como acidentes. “Há muita coisa que se pode fazer desde já na iniciativa privada.”
O executivo também disse que deve-se evitar propostas que demandem a criação de sistemas complexos para sua viabilização, sob o risco de elas não saírem do papel.
Em nota, a ABO2O acrescentou que que elabora estudos sobre o futuro do trabalho e experiências de outros países e construindo entendimento técnico a respeito do trabalho em plataformas digitais, considerando a realidade de cada aplicativo. Diz estar aberta ao diálogo e que acredita em saídas com instrumentos jurídicos já em funcionamento que garantam a todos a proteção social..
Entre as associadas da entidade estão a Loggi, 99 e Rappi. Outra associação, a Amobitec, que inclui iFood e Uber, não comentou o assunto.
A Loggi afirmou que todos os entregadores de seu serviço são microempreendedores individuais, podendo contribuir com o sistema previdenciário, tendo acesso a aposentadoria e ter coberturas como auxílio-doença.
Gil Almeida Santos, presidente da Febramoto (Federação brasileira dos Motociclistas Profissionais) vê o debate com ceticismo.
Santos diz que as empresas estão buscando artifícios para, indicando demonstrar preocupação com o trabalhador, evitar o cumprimento da lei trabalhista atual. “Se houvesse preocupação com trabalhadores, elas não davam tantas voltas para ficar na mesma situação.”
Ele afirma que a legislação trabalhista já oferece instrumentos para permitir um trabalho flexível que dê proteção ao trabalhador, entre elas o trabalho intermitente e a possibilidade de terceirização da atividade principal da empresa.
Na avaliação de Santos, a adoção do MEI para o trabalhador em aplicativos é uma forma de precarização.
“O MEI tinha como prerrogativa inserir os trabalhadores da informalidade na formalidade. E está sendo usado para fazer o contrário.”
O debate sobre direitos dos trabalhadores em apps ganhou espaço com paralisações convocadas por entregadores de aplicativo a partir em 2020.