SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um ano e meio após ser incluída no programa de desestatização do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), o Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Avançada), único fabricante de chips semicondutores da América Latina, se aproxima da dissolução, demitindo dezenas de funcionários em Porto Alegre (RS).
No contexto da crise global de chips gerada pela pandemia, alguns empregados tentam reverter a liquidação e brigam para que a estatal seja vendida ao setor privado, uma maneira de manter a produção das peças.
A empresa projeta, desenvolve e vende chips para diferentes aplicações, de passaportes a identificação de veículos e animais. Também produz etiquetas de reconhecimento por radiofrequência (o RFID, um circuito que não requer bateria).
O processo de liquidação parece irreversível. Os pareceres do Ministério da Economia e do Ministério da Tecnologia são favoráveis ao desmonte e à alienação da estatal, e a expectativa dos envolvidos é que o TCU (Tribunal de Contas da União) não se oponha ao estudo técnico do governo.
Os funcionários estão sendo exonerados (de 177 pessoas, 89 foram demitidas neste ano) e o estoque da empresa deve ser leiloado em dezembro.
Em um processo de liquidação, os concursados são desligados. Entre as estatais independentes, o Ceitec tinha um dos quadros técnicos mais qualificados do país, com 57% dos profissionais pós-graduados, além de doutores e pós-doutores.
Criada como associação civil em meados dos anos 2000, a organização foi estatizada em 2008 no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e vinculada ao Ministério de Tecnologia, à época comandado por Sergio Rezende.
A meta era inserir o Brasil no mercado global de semicondutores -cuja demanda deslancharia com a popularização dos smartphones-, induzir a implantação de outras empresas de microeletrônica e formar recursos humanos para a área.
Chips semicondutores são essenciais para produtos tecnológicos de ponta, de computadores a carros e ao 5G. O Ceitec não tem em seu portfólio produtos para esse tipo de uso, mas poderia desenvolver peças para o setor automobilístico, que enfrenta escassez no último ano.
Embora tenha desenvolvido projetos e mais de 40 patentes de tecnologia, a empresa não dá lucro e há 12 anos depende dos recursos da União para sobreviver.
No documento em que opta pela liquidação, a Secretaria Especial do Programa de Parceria de Investimentos, vinculada à Economia, reconhece que o patrimônio líquido da companhia cresceu desde 2016 e que as subvenções do Tesouro caíram 31% no mesmo período. Em contraponto, diz que a receita não acompanha o crescimento da despesa.
De modo pragmático, considerando apenas o caixa, os técnicos concluíram que a estatal está “distante de alcançar a autossustentabilidade” devido aos elevados custos.
“As receitas totais estiveram historicamente abaixo dos R$ 8 milhões anuais, cobrindo menos do que 10% das despesas”, destaca o documento. De 2010 a 2019, o Tesouro disponibilizou R$ 617,7 milhões para custeio do Ceitec.
Silvio Luis, presidente da Acceitec (Associação dos Colaboradores da Ceitec), entidade criada como resistência à liquidação, afirma que a empresa não foi criada sob a ótica exclusiva do lucro ou para suprir toda a demanda nacional de semicondutores, mas para induzir a cadeia de desenvolvimento do setor.
Segundo ele, uma série de erros de diretorias, que não enxergaram oportunidades de negócio em microeletrônica, tornaram a empresa menos atraente. Há, também, a impressão entre funcionários de que foi simples para o governo cortar uma estatal “isolada” no sul do país, com pouca visibilidade e de atuação num setor muito técnico e de difícil compreensão popular.
“Passar a empresa para a privatização seria aceitável e entendível. Liquidar não tem sentido. Não existe nenhum tipo de iniciativa no Brasil que pode substituir o trabalho que o Ceitec faz”, afirma. “Estamos lutando em tribunais, mas o momento não é bom para nós.”
A reversão da decisão demandaria um novo decreto presidencial.
Muito antes da produção do documento de desestatização, membros do governo já demonstravam intenção de tirar a empresa do escopo do Estado.
O Ceitec foi responsável por projetos encomendados pelo Executivo que nunca foram adquiridos. São exemplos o chip do boi, capaz de rastrear todo o rebanho doméstico, o de identificação veicular e o do passaporte, o CTC21001, que tem a certificação internacional de segurança. Eles foram entregues nos prazos e com a qualidade adequada, mas a produção em escala nunca foi encomendada.
Pelos cálculos da associação, a estatal poderia ter independência financeira caso os acordos de cooperação com outras empresas federais tivessem sido cumpridos, como o caso da Casa da Moeda, que adquire chip de uma empresa internacional, e a Hemobras, vinculada ao Ministério da Saúde.
A autossuficiência, no cenário mais pessimista, estava programada para 2028, de acordo com a Acceitec. Em quatro anos, a empresa dobrou o faturamento e vem reduzindo seu prejuízo, contabilizado em R$ 4,1 milhões em 2020. Em 2017, era de R$ 24 milhões -ano em que foram finalizadas as instalações industriais da fábrica e quando passou a vender soluções ao mercado.
Em geral, empresas de microeletrônica têm uma longa curva de maturidade até o lucro. Esse é um dos motivos que levou gigantes asiáticas a resistirem em ampliar suas plantas diante da crise de semicondutores vivida na pandemia. O investimento é alto com equipamentos, pesquisa e desenvolvimento, e o retorno financeiro não é imediato.
Ricardo Reis, professor do Instituto de Informática da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), acompanhou o Ceitec desde a fundação e participou da massa crítica que fomentou a microeletrônica na década de 1970. Para ele, o gasto com tecnologia deveria ser encarado como investimento e aliado a uma visão estratégica de longo prazo.
“Grande parte dos países que tiveram desenvolvimento satisfatório de tecnologia contaram com apoio do governo, como na formação de recursos humanos. Empresas na Coreia do Sul e em Taiwan não são mais estatais, mas se estabilizaram a partir do apoio governamental”, afirma.
Embora o governo tenha optado agora por livrar-se da estatal, as próprias diretorias que a ocuparam não enxergaram oportunidades de negócios a fim de torná-la mais atraente até para o mercado internacional, segundo especialistas. Uma parceria com uma montadora ou fabricante de dispositivos automotivos poderia suprir a carência de chips no setor.
Diante do desequilíbrio na cadeia global de semicondutores, desencadeado pela pandemia, os Estados Unidos reacordaram para o tema, tomando medidas protetivas para seu mercado.
Em abril deste ano, o presidente americano Joe Biden apareceu com uma bolacha de silício na mão -matéria-prima do chip semicondutor. Disse que o país precisa investir em sua infraestrutura de chips, também com receio da dominância chinesa.
“Precisamos construir a infraestrutura de hoje e não consertar a de ontem”, afirmou, propondo revitalizar a manufatura americana. Outros países estão incentivando a indústria nacional, como Alemanha, França e Reino Unido.
A crise de Covid-19 estremeceu o comércio de semicondutores com duas explosões de demanda: uma na indústria de celulares, tablets e computadores e outra na indústria automobilística, que após as paradas fabris se deparou com alta procura por carros.
Estudo recente da SIA (Associação da Indústria de Semicondutores, na sigla em inglês) em parceria com o Boston Consulting Group mostra que novas vulnerabilidades emergiram no setor e que precisam ser consideradas por governos. A eles, cabe investir em pesquisa e produção doméstica de chips, a fim de criar uma produção global descentralizada.
“É política dos países apoiar empresas para que tomem forma e depois possam competir. Isso é feito em países que querem se industrializar. Mas investir em tecnologia parece um luxo que país pobre não pode ter”, diz Sérgio Rezende, ex-ministro da Tecnologia. Ele teme que todo esforço dos engenheiros do Ceitec vire “ferro velho”.
Os empregados não sabem ao certo qual será o destino de produtos já fabricados.
Procurado, o Ministério da Tecnologia não respondeu. A reportagem tentou contato com Abílio Eustáquio de Andrade Neto, general designado pela extinção da empresa, mas não conseguiu.