BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O governo e seus aliados no Congresso inseriram na PEC (proposta de emenda à Constituição) que adia o pagamento de precatórios uma mudança na regra de correção do teto de gastos que, na prática, expande o limite das despesas federais.
O conjunto das alterações previstas cria um espaço orçamentário para despesas de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, de acordo com o relator da proposta, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).
Só com a mudança na correção do teto, Motta afirma que seria aberto um espaço de mais de R$ 39 bilhões em relação ao previsto hoje na proposta de Orçamento para 2022.
Segundo ele, a folga no Orçamento subiria para R$ 83 bilhões com a flexibilização no pagamento dos precatórios ?dívidas do governo reconhecidas pela Justiça, que serão em parte jogadas para anos seguintes.
A PEC dos precatórios já previa a criação de um espaço no teto de gastos por jogar parte dessas despesas para os anos seguintes, mas a versão anterior gerava uma folga menor em 2022 ?de R$ 49 bilhões.
Motta afirmou que os reflexos da crise da Covid-19 justificam as mudanças. “Estamos antecipando a reavaliação do teto, que poderia ser feita em 2026, para 2021, porque tivemos uma pandemia que mais do que justifica a antecipação dessa reanálise”, disse o relator.
Segundo ele, a nova versão da PEC, que agora prevê a mudança no teto de gastos, também deverá permitir elevar de R$ 4 bilhões para R$ 11 bilhões a verba para compra de vacinas contra a Covid-19.
Pelo plano, a Constituição será alterada para que o teto anual de despesas federais passe a ser corrigido pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulado em 12 meses de janeiro a dezembro.
Atualmente, o período usado para calcular o limite anual considera o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Isso cria um descompasso nas contas, porque despesas previdenciárias e de programas sociais são corrigidas com base na inflação calculada no encerramento do ano.
Com a alteração, seriam sincronizados os períodos de correção do teto e das despesas indexadas do governo. O índice de correção de 2017, primeiro ano de vigência, seria mantido em 7,2% (como foi feito na época). Para todos os exercícios seguintes, passa a ser aplicada a nova regra de correção.
Na regra atual, o teto de gastos é estipulado em R$ 1,610 trilhão em 2022. Com a nova regra, o teto passaria para R$ 1,656 trilhão. A elevação ocorrerá porque a taxa de inflação a ser usada como reajuste é maior, o que aumenta o limite.
A nova correção do teto também será aplicada ao limite de pagamento dos precatórios (que é criado pela PEC), estabelecendo um pagamento de sentenças levemente maior do que as discussões anteriores da PEC previam para 2022.
Cálculos do governo apontam que, do total aberto em espaço no teto, R$ 24 bilhões serão consumidos pela inflação superior à estimada na proposta de Orçamento (o que corrige para cima diferentes despesas obrigatórias, como aposentadorias). Com isso, devem sobrar R$ 59 bilhões para outras despesas.
Apesar dos números apresentados por Motta, o espaço a ser aberto no teto de gastos com todas as mudanças planejadas pode ser ainda maior.
Pelos cálculos do economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado que monitora as contas públicas), só a nova regra de correção do teto deve expandir o limite em 2022 em R$ 47 bilhões (em relação ao previsto sob a regra atual).
Segundo ele, somado ao impacto provocado pela flexibilização dos precatórios, o espaço aberto nas contas de 2022 deve chegar a R$ 95,6 bilhões.
“Se essa proposta que está sendo aventada avançar, será uma lambança ampla e irrestrita na regra do jogo. Pode-se discordar do teto de gastos ou de qualquer outra regra fiscal, mas isso nada tem a ver com técnica. Mudar retroativamente as contas poderá ser a maior contabilidade criativa de que se tem notícia”, disse.
A mudança na regra do teto de gastos começaria a valer já neste ano, de acordo com a nova versão da PEC apresentada nesta quinta. Um dispositivo determina que a correção em 2021 poderá liberar um limite de até R$ 15 bilhões em despesas ligadas à vacinação contra a Covid-19 ou em “ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico”.
O plano é colocado em prática na reta final de um ano em que o ministro Paulo Guedes (Economia) já falava em liberar gastos públicos para 2022. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em maio, Guedes disse que o governo iria ao “ataque” e prepararia medidas com apelo para o ano eleitoral, mas ressaltou, na ocasião, que tudo seria feito sem burlar o teto de gastos.
“Agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque. Vai ter Bolsa Família melhorado, BIP [Bônus de Inclusão Produtiva], o BIQ [Bônus de Incentivo à Qualificação], vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma. Tudo certinho, feito com seriedade, sem furar teto, sem confusão”, disse.
Membros do Ministério da Economia afirmam que o plano não teve origem na pasta, que foi vencida nas negociações sobre o novo programa social. A ideia do ministro Paulo Guedes (Economia) era implementar o programa dentro do teto após abrir espaço nas contas com a PEC dos precatórios, além de apontar uma fonte de custeio com a reforma do IR (Imposto de Renda). No entanto, a reforma do IR travou no Senado.
Técnicos afirmam que a sincronização dos índices de correção é bem-vinda e acaba com uma distorção na regra. Eles afirmam, porém, que a proposta surge em um momento ruim, criando risco de que mudanças mais nocivas sejam incluídas pelo Congresso na revisão do teto.
A PEC dos precatórios está em análise em comissão especial da Câmara, mas o relatório tem sido adiado diante das discussões. O texto precisou ser modificado para incorporar a revisão no teto de gastos. Por isso, a expectativa é que a votação no colegiado ocorra apenas na próxima semana.
Depois da comissão, a PEC precisa do apoio de 60% do plenário da Câmara e, então, seguirá para o Senado, onde também tem uma tramitação lenta.
Além de turbinar o programa social, a abertura nas contas de 2022, ano eleitoral, deve permitir uma ampliação dos repasses para emendas parlamentares, recursos usados por deputados e senadores para destinos de seu interesse.
As demandas da classe política e o avanço da inflação (que corrige despesas obrigatórias) já apontavam um estouro de pelo menos R$ 72 bilhões no teto de gastos de 2022. Os números foram compilados no mês passado por Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Fundação Getulio Vargas), com base em cálculos do economista Marcos Mendes.
O cálculo dos especialistas levou em conta o Auxílio Brasil, emendas parlamentares, a desoneração da folha de pagamento para 17 setores e pressão por mais recursos no Fundo Eleitoral.
A alternativa da correção no teto é estudada após a equipe econômica passar a buscar uma saída para que os R$ 400 exigidos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para os pagamentos do Auxílio Brasil e as outras demandas da classe política tentassem preservar o espírito do teto de gastos e os fundamentos macroeconômicos gerados pela regra fiscal.
As informações de que o governo estudava um possível estouro do teto de gastos afetaram os mercados. Nesta quarta-feira (20), Guedes chegou a falar publicamente na possibilidade de o governo pedir uma licença para gastar fora do limite constitucional.
Diante das incertezas, o dólar bateu a máxima de R$ 5,67 na abertura do pregão da manhã desta quinta-feira (21), uma alta de 2% em relação ao fechamento da véspera. Durante a tarde, a Bolsa caía mais de 4%.