Premiar talento e esforço parece justo, à primeira vista, já que a meritocracia promete substituir os privilégios de herança por um modelo mais eficaz. Em seu “A Cilada da Meritocracia”, no entanto, o autor britânico radicado nos Estados Unidos Daniel Markovits aponta que não é bem assim.
“Mérito é uma farsa”, escreve o professor da Escola de Direito da Universidade Yale, nos Estados Unidos, na primeira linha do livro. Para ele, a meritocracia bloqueia oportunidades para a classe média, leva a sociedade ao ressentimento e deixa a elite acreditar ser parte de uma casta que está nessa posição apenas por mérito próprio.
A obra combina conceitos de economia e sociologia, discutindo os embates entre classes ao refazer um caminho percorrido por autores importantes, como Thorstein Veblen havia feito ao descrever o papel, o comportamento e as contradições da “classe ociosa” do fim do século 19.
Agora, Markovits argumenta que a “ociosidade” foi substituída pelo mito da mobilidade social por mérito, gerando uma amargura crescente na classe média nos Estados Unidos (e não apenas lá), que se vê apartada dos melhores empregos e das escolas de ponta para seus filhos.
A armadilha dos tempos atuais é que a meritocracia pretende justificar as desigualdades que produz e cria uma elite que se considera virtuosa e trabalhadora, diz o autor, em entrevista à Folha de S.Paulo.
“O truque ideológico da meritocracia é que isso é verdade em certo sentido, ao contrário dos aristocratas que simplesmente herdaram riqueza e status, os meritocratas devem trabalhar (e fazer seu trabalho de forma cada vez mais árdua e produtiva) para progredir e manter suas conquistas.”
Em seu livro, ele ressalta que, embora existam grandes exemplos de pessoas que saíram de condições sociais difíceis e conseguiram mudar de vida, é preciso olhar para a desigualdade estrutural. Ainda que seja importante valorizar dedicação e talento, um sistema de mérito não pode se basear na exceção para se considerar funcional.
Ao mesmo tempo que as elites da meritocracia se consideram fruto do mérito próprio, elas se beneficiam das enormes desigualdades em investimentos educacionais e se empenham para dar a seus filhos a mesma formação de ponta que só elas podem pagar.
“Desse modo, a meritocracia forma novas castas e se torna um novo método pelo qual as famílias da elite podem passar privilégios de geração a geração, criando uma nova barreira para o aumento da igualdade de oportunidades”, afirma o autor.
Por outro lado, a classe dominante também entrou em uma espécie de armadilha, ao ter de municiar seus filhos para a competição por melhores empregos e oportunidades, investindo em padrões de formação cada vez mais elevados.
Esse sistema aumenta também as expectativas e cobranças sobre as novas gerações no topo da pirâmide meritocrática, que hoje precisam se esforçar muito mais que seus pais e avós para manter um padrão de vida semelhante.
É como uma maratona para superar todos os outros competidores, em que algumas pessoas largam com vantagem, a maior parte fica pelo caminho e os vencedores depois justificam as recompensas como resultantes apenas do “mérito” individual.
Nesse sentido, Markovits argumenta que, embora ajude a perpetuar a baixa mobilidade social dos mais pobres, a meritocracia (e suas promessas de status e riqueza como recompensas por desempenho) também não é boa para a elite.
Segundo o autor, as elites estão chegando à maturidade cada vez mais exaustas, e mesmo quem está no topo já começa a se rebelar contra a qualificação intensiva e competitiva como forma de manter o status social.
Ele lembra o número crescente de “filhos da meritocracia” que começam a questionar a busca sem fim por mais produtividade e reconhecimento, uma semente que já se nota tanto em universitários norte-americanos quanto em jovens chineses.
A elite da meritocracia teme não conseguir alcançar uma realização verdadeira e mesmo os que ficarem ricos nunca atingem um nível de satisfação pessoal, caminhando para uma ansiedade coletiva e um medo de não estar à altura, complementa o autor.
Ao contrário do discurso meritocrático, ele argumenta também que o Estado deve trabalhar para reduzir as enormes desigualdades sociais, sobretudo com investimentos em educação, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
“Isso é absolutamente essencial para alcançar a justiça econômica. Também é importante ressaltar que o atual sistema de meritocracia não está, de fato, isento de intervenção do Estado, longe disso.”
Ele afirma que há uma série de leis e políticas públicas no sentido contrário incluindo, por exemplo, o status de isenção de impostos concedido às escolas e universidades privadas de elite, o que equivale a um subsídio público maciço em favor dos mais ricos.
Ruim para os mais pobres, ao perpetuar desigualdades, e aprisionador também para a elite, a quem serviria, então, o mito meritocrático. Segundo o autor, a falsa recompensa pelo mérito já não funciona e serve para criar um clima de ressentimento entre a parcela da população que não consegue progredir.
Esse rancor ajuda a inflamar discursos de populistas, como o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e Jair Bolsonaro, no Brasil. Eles conseguiram responder ao ressentimento crescente com promessas vagas, como a de “um Brasil acima de tudo” ou “fazer com que a América seja grande novamente”.
O poder ideológico da meritocracia faz a desigualdade que ela promove parecer justificada, tendo por base o esforço e a habilidade de uma elite, explica Markovits. Ao mesmo tempo, pessoas de fora da elite sentem que o sistema atual não serviu para abrir oportunidades e dá aos ricos e aos pobres chances imensamente desiguais.
“Essa tensão, entre as reivindicações da elite por aumentar seus direitos e o maior entendimento da maioria sobre privilégios injustos, acaba por tirar crédito das elites, incluindo as instituições de ensino da elite, aos olhos das pessoas comuns. O populismo decorre naturalmente dessa perda de confiança no conhecimento e nas instituições.”