SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com mais da metade da população brasileira em insegurança alimentar e quase 30 milhões de miseráveis, o Brasil tem recursos mal aproveitados em outras áreas que deveriam ser dirigidos a programas para a primeira infância e aos jovens.
Para o diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, Naercio Menezes Filho, se esses indivíduos não forem atendidos agora, vão se tornar dependentes do Estado para o resto de suas vidas.
“O dinheiro existe. A questão é como conseguir mexer com interesses envolvidos na sua distribuição. Uma minoria capturou esses recursos”, afirma Menezes.
“Em vez de termos programas e subsídios ineficientes, que seja feita uma coisa simples: a transferência de mais dinheiro diretamente aos mais pobres.”
Segundo seus cálculos, para cada R$ 1 a mais per capita oferecido em um programa como o Bolsa Família, o PIB per capita do município onde o dinheiro é gasto aumenta R$ 4, o que contribuiria para a aceleração do crescimento e o desenvolvimento de economias locais.
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Na comparação internacional, o Brasil não gasta pouco na área social. São cerca de 25% do PIB, com despesas crescentes na educação, chave para o aumento da renda e da produtividade. Mas a taxa de pobreza segue elevada. O que aconteceu?
Naercio Menezes Filho – De fato, aumentamos muito os gastos com educação e saúde nos últimos 30 anos. No ensino médio, aumentou cerca de três vezes de 2000 para cá. Mas só o gasto com educação não é suficiente para eliminar a pobreza de forma definitiva.
Tem uma parcela da população que já nasce em família muito pobre e não consegue ter as condições mínimas para o aprendizado e para passar de ano, porque não consegue desenvolver habilidades sócio-emocionais, como persistência e garra. Nem as cognitivas.
Há pesquisas recentes que mostram claramente que os primeiros anos de vida são essenciais para o desenvolvimento infantil saudável. Se você nasce em condições de pobreza, sem saneamento básico, em casas lotadas, com pais sem instrução e que não tiveram a oportunidade de se educar, você acaba ficando com desenvolvimento prejudicado.
Sem um bom desenvolvimento infantil, a pessoa não consegue aprender, não tem aquela vontade de fazer a lição de casa, de ir atrás, de se esforçar e fazer perguntas aos professores.
Estamos gastando mais, mas isso muitas vezes não adianta para as crianças em famílias muito pobres. Além disso, não é só o gasto que importa, mas a gestão na educação.
Há redes de ensino em municípios pobres que não têm a mínima capacidade gerencial. O Brasil tem mais de 5.500 municípios, a maioria muito pequenos, sem gestores com nível educacional elevado que saibam planejar e executar, cobrar metas de professores e alunos.
Nos últimos 30 anos, o Brasil incluiu muitas pessoas na escola, gente que não chegava ao ensino médio. Mas só o gasto não é suficiente.
O Bolsa Família foi criado em 2003 para focar na primeira infância. Obriga as crianças a visitar posto de saúde e manter frequência escolar mínima (85% das aulas para alunos de 6 a 15 anos e de 75% para os de 16 e 17 anos). Qual o resultado?
NMF – No início, o Bolsa Família foi criado para eliminar a pobreza extrema e não deixar que nenhuma família passasse fome. Ele chegou a atingir o objetivo. Só que duas coisas aconteceram depois.
Primeiro, o valor não foi reajustado de acordo com a inflação e hoje está baixo [o último reajuste foi em 2018].
O segundo é que sua cobertura não foi ampliada de acordo com o aumento da pobreza.
Mas o programa sempre foi muito elogiado pela sua eficiência. Gasta-se pouco [R$ 35 bilhões/ano; 0,5% do PIB] e consegue-se praticamente eliminar aquela pobreza extrema com o passar do tempo. Mas esse pouco é pouco demais.
Para acabar com a pobreza extrema você precisaria, dependendo da região, transferir R$ 500 ou R$ 600 por família, especialmente para aquelas com crianças pequenas.
Em algumas regiões, os quase R$ 200 em média pagos atualmente pelo Bolsa Família não são suficientes sequer para acabar com a pobreza extrema, porque os gastos com alimentação são maiores que isso. O Bolsa Família precisa ser aperfeiçoado e chegar a todos extremamente pobres.
É possível fazer isso usando o aplicativo do governo federal que foi desenvolvido na pandemia para o auxílio emergencial. Para as famílias com crianças pequenas, não adianta só os pais terem o suficiente para comer, mas não para comprar remédio, roupa e as crianças se desenvolverem em um ambiente saudável, em que a mãe tem tempo para conversar e interagir com o filho. Isso é essencial.
Uma criança que vive num lar de dificuldades, em que vê a mãe preocupada com dinheiro, tendo que trabalhar sem ter com quem deixar os filhos, que não interage, essa criança vai demorar mais para começar a falar, a andar e, depois, terá muita dificuldade de aprendizado.
Ela vai ser uma daquelas crianças conturbadas, coisa que a neurociência vem explicando muito bem.
Dificilmente ela sairá bem formada de um ensino médio e conseguirá um emprego formal, onde há mais produtividade e onde se paga mais impostos. Isso gera um círculo vicioso, nocivo para a perpetuação da pobreza e para a economia.
Sei que o dinheiro é escasso e que temos uma questão fiscal relevante no presente, mas a coisa mais importante que podemos fazer para o país é investir mais nessas crianças para termos alguma chance de mudar no futuro.
Quais seriam as alternativas para financiar mais gastos voltados à primeira infância?
NMF – Os recursos existem. A questão é como mexer na distribuição, com uma minoria que capturou esses recursos. Como, por exemplo, com os subsídios a grupos e setores [quase R$ 310 bilhões/ano].
Isso passa por muita coisa, porque o Brasil é um país estruturalmente desigual. As pessoas que nasceram em famílias mais privilegiadas têm uma série de benefícios que as pessoas mais pobres não têm.
Desde descontar gastos com saúde e educação no Imposto de Renda a estudar numa universidade pública de graça depois de passar a vida em escolas privadas.
O que defendo é que, em vez de termos todos esses programas e subsídios ineficientes, que seja feita uma coisa simples: transferência direta de mais dinheiro aos mais pobres.
Para isso, não é necessário criar novo ministério ou estrutura administrativa. Basta dar um cartão para essas pessoas. Já temos a tecnologia para fazer isso. Temos o Bolsa Família, o Cadastro Único [sistema nacional de informações para fins de inclusão em programas sociais] e o registro das pessoas que precisaram receber o auxílio emergencial.
Precisamos usar tudo isso em um programa eficiente, com valor maior, com dinheiro fornecido diretamente no caixa. Para que as pessoas possam sacar sozinhas, sem assistencialismo, sem influência política.
Isso permitiria à família criar essa criança, com as mães interagindo com elas. Depois, entram o sistema de educação, de saúde, onde já gastamos bastante, apesar de serem necessários aperfeiçoamentos.
Mas hoje é como se o Brasil tivesse ido só até a metade do caminho. Falta a outra metade, que é a inclusão dessas crianças, desde o nascimento. Com mais recursos do que o disponibilizado hoje pelo Bolsa Família.
Pois mesmo que a economia cresça e consiga gerar empregos, essas pessoas muito pobres na infância terão deficiências acumuladas que tornarão difícil a elas se beneficiem disso.
Uma parcela da sociedade é contra esse tipo de inciativa. Dizem que gera acomodação entre os beneficiários. Como responder a essa preocupação?
NMF – Sim, existe um risco se você transferir muito dinheiro para os pais. Há a tentação de evitar o trabalho formal, por exemplo; e o temor de aparecer nas bases de dados e perder o benefício. Mas esse risco é menor do que o de essas famílias acabarem tendo filhos que vão depender de recursos públicos para o resto da vida.
Quando essas crianças não têm o desenvolvimento adequado, elas vão se tornar “nem-nem”, que nem estudam nem trabalham.
Esses jovens vão ficar dependendo de alguma maneira do Estado para sempre, porque não vão conseguir se inserir no setor formal da economia.
Pois não têm nenhuma experiência. A única coisa que podem fazer é entregar comida por aplicativo. Essas pessoas vão acabar sugando as finanças públicas, de um jeito ou de outro, para o resto da vida, reforçando o ciclo de pobreza. Essa é a chamada pobreza estrutural.
Apesar da necessidade de mais investimentos nas crianças, a principal causa relacionada à pobreza parece ser o baixo crescimento e a estagnação, há anos, da produtividade, não?
NMF – Se voltarmos atrás, o Brasil cresceu muito nos anos 1960 e 1970, época do milagre econômico, porque trouxemos o pessoal que estava na zona rural, numa agricultura de subsistência, para os centros urbanos. Trabalhando no setor de serviços, mesmo que ganhando pouco, é melhor do que subsistir da roça.
Quando as pessoas vieram para os centros urbanos, elas começaram a ganhar um pouco mais, a ser mais produtivas. Aí, a economia começa a crescer. Na hora que esse ciclo se esgota, é preciso outras coisas, como educação e capital humano, saúde e tecnologia.
E não tivemos isso de forma consistente no Brasil nos últimos 40 anos. Esgotou-se essa fonte de crescimento, que é o que está acontecendo na China hoje, com a diminuição da migração rural-urbana.
Não tivemos um novo motor para estimular o crescimento. Aos poucos, colocamos os jovens na escola, até o ensino médio. Mas a qualidade do aprendizado segue muito ruim, assim como a da saúde.
E não tem incentivo, nem para as pessoas se educarem mais, nem para as empresas investirem em tecnologia e gerenciamento. As firmas brasileiras são geridas pessimamente também, mesmo na indústria.
Porque não tem competição, concorrência internacional, tem muito subsídio do governo.
No caso dos jovens, por que eles se tornam “nem-nem”?
NMF – Porque acham que nunca terão condições de competir e ter uma vida digna. Essa falta de investimento desde a primeira infância faz com que esses jovens olhem para os seus pais, seus amigos e pensem: “Não sou eu que vou morar num apartamento legal, que vou ficar rico. Isso não é para mim”. Por isso, muitos desistem de estudar no meio do caminho.
É preciso dar oportunidades às pessoas realizarem seus sonhos. Um pacote no início da vida que vai permitir isso. E, para as empresas, competição. Abrir a economia, integrar as cadeias de valor, simplificar a estrutura tributária. Não fazemos nada disso.
Temos desigualdade persistente, um monte de gente perdida e sem esperança, e as empresas acomodadas, sem investir, sem inovar. E assim estamos parados há quatro décadas.
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Naercio Menezes Filho, 56 Professor da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e da FEA-USP, é diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância e membro da Academia Brasileira de Ciência. Tem Ph.D. em economia pela Universidade de Londres, com mestrado e graduação, também em economia, pela USP