SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando fez 15 anos, Aline Bezzoco trocou a tradicional festa de debutante por um computador. “Aquilo me abriu a mente”, afirma, ao descrever o momento em que começou a usar a ferramenta. Era o início dos anos 2000 e computadores pessoais começavam a se tornar mais populares nas lojas de eletrodomésticos.
Dali até realmente atuar na área, foram seis anos. Antes, cursou design gráfico mesmo com a impressão de que queria trabalhar com tecnologia, continuando os estudos que fazia no ensino médio técnico de informática. “Na época eu fui em umas feiras de universidade e não me senti representada. Eu só via homens brancos e me perguntava: ‘o que eu estou fazendo aqui?'”, conta Bezzoco.
Hoje ela é desenvolvedora front-end, ou seja, da interface de uma página web, a parte que os usuários veem e com que interagem. Em um projeto de 2018, criou uma ferramenta que conta a história de mulheres negras: o Black Women History, uma API (Interface de programação de aplicações, na sigla em inglês), um código de programação que facilita a integração entre plataformas.
Por meio do seu projeto, é possível saber que Mariana Crioula “foi líder de uma das maiores revoltas de escravos no Rio de Janeiro”, que Laudelina de Campos Melo foi a “fundadora do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil” e que Rebeca Andrade foi “a primeira mulher brasileira a vencer duas provas na mesma edição” das Olimpíadas.
O espaço para contribuições como essa, no entanto, ainda é reduzido. Levantamento sobre profissionais de tecnologia PretaLab, feito entre os meses de novembro de 2018 e março de 2019, mostra uma realidade desigual. Homens representavam 68% da força de trabalho no setor, e brancos, 58,3%, e não há levantamentos mais recentes sinalizando alguma mudança radical nesse quadro.
Para mudar esses números, surgiram iniciativas voltadas para mulheres negras. É o caso do Minas Programam, instituto de ensino de programação.
Com o apoio do Frida, fundo de financiamento de organizações feministas, e da Epic Games, gigante do desenvolvimento de jogos eletrônicos, o instituto oferece cursos gratuitos de 3 meses de introdução à programação, além de oficinas e palestras de curta duração.
Já são mais de 250 meninas que passaram pelo curso principal, geralmente entre os 14 e 23 anos e, a partir de 2020, quando passou a ser online, de todo o Brasil. Cerca de 90% das alunas são negras atualmente.
“Para nós é indispensável ter mais meninas negras nesse espaço”, afirma Bárbara Paes, uma das fundadoras do instituto. “Para elas, acessar conhecimento sobre tecnologia é mais difícil. Enfrentamos mais barreiras para sermos vistas como possíveis produtoras de tecnologia.”
Apesar de não ser o foco da organização, o aquecidíssimo mercado de inovação pode ser uma porta para tirar essas meninas de situações de vulnerabilidade.
Pesquisa divulgada em março deste ano pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostra que o desemprego causado pela pandemia atingiu mais as pessoas negras. Em média, a taxa de desocupação havia crescido 1,62 ponto percentual em relação ao ano anterior, mas entre pessoas pretas e pardas a alta foi maior, de 2,6 e 1,75 pontos percentuais, respectivamente.
Um levantamento interno feito pelo Minas Programam mostra, segundo Paes, que 60% das ex-alunas estão trabalhando com programação ou tecnologia, enquanto 30% continuam engajadas em procurar um emprego nessa área.
E isso é importante porque “não enxergar pessoas negras como possíveis produtores de tecnologia é uma forma de excluir a gente de um espaço de tomada de decisão”, afirma a fundadora do instituto. “Hoje ciência e tecnologia são moldadas pela sociedade na mesma medida em que moldam a sociedade. É uma via de mão dupla.”
Os últimos anos foram de diversas revelações sobre vieses racistas de algoritmos. Em maio, um estudo interno do Twitter mostrou que o algoritmo de corte de imagens da rede social tende a excluir negros de fotos. A divulgação foi feita após usuários apontarem o erro.
Até mesmo a ONU (Organização das Nações Unidas) se posicionou sobre o tema em novembro de 2020, quando fez um alerta sobre o uso de inteligência artificial para reconhecimento facial e controles policiais.
“Existe um grande risco de que [a inteligência artificial] reforce o preconceito e, assim, agrave ou possibilite práticas discriminatórias”, disse na época a especialista jamaicana Verene Shepherd, que integra o comitê da ONU para a eliminação da discriminação racial.
Para garantir a permanência das alunas, o trabalho do Minas Programam transborda o conhecimento técnico. “Uma boa parte do que a gente faz é atuar nesse tema de reconstrução de autoestima intelectual”, diz Paes.
Uma das estratégias é mostrar quem já está nesses espaços, como no projeto em que fizeram uma série de entrevistas com mulheres negras na tecnologia. “A gente sempre compartilha histórias de cientistas negras pioneiras, resenhas de livro, e acho que assim conseguimos mudar um pouco a ideia de que só tem homem branco trabalhando com isso.”
Aline Bezzoco sentiu por não ter referência quando era adolescente. “Eu demorei para seguir meu sonho porque na época me senti muito acuada”, conta ela. “Não era um ambiente em que eu me sentia bem-vinda.”
O computador entrou na sua vida na época dos blogues, e ela aproveitava para aprender mais sobre a construção de um site, além de consertar máquinas de outras pessoas para fazer um dinheiro extra.
Ela tem orgulho do API Black Women History. Primeiro porque ela leva informações sobre o papel de mulheres negras na história. “Olha a quantidade de coisas que nós, mulheres negras, fizemos. Não só para o Brasil, mas para o mundo”, afirma a desenvolvedora. “Faltam pessoas negras em espaços de poder da tecnologia para trazer o nosso olhar. Nós sabemos a nossa realidade.”
Mas o avanço da ferramenta está também na sua característica técnica, que considera mais democrática. Por ser em código aberto, ele pode ser usado por qualquer pessoa na rede. É possível, por exemplo, fazer um teste sobre o conhecimento de mulheres negras com a ferramenta, consultando as informações e devolvendo-as na tela de um aplicativo.
“Em um restaurante nós temos o garçom, a cozinha e o salão, onde estão as mesas e as cadeiras. O garçom é a API. Ele faz a conexão entre a cozinha e o salão. O salão é a parte visual, a tela, e a cozinha é o servidor, onde você tem todas aquelas informações salvas em um banco de dados”, compara Bezzoco.