SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alimentos produzidos por comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo, estão chegando às mesas de famílias vulneráveis na capital.
Desde maio de 2020, foram doadas 254 toneladas de alimentos a 31 mil pessoas, em ações sociais de cidades da área dos quilombos, como Eldorado e Iporanga, e comunidades paulistanas, como Brasilândia, na zona norte, e Jardim São Remo, zona oeste.
A rede de distribuição nasceu de um plano emergencial para garantir saúde, renda e segurança alimentar aos moradores dos quilombos.
No Vale do Ribeira está a maior área contínua de mata atlântica do país, 21% dos remanescentes do bioma. Na região, que abriga também caiçaras, indígenas e caboclos, morou o presidente Jair Bolsonaro na adolescência.
A Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale) organiza a produção e o comércio de 17 quilombos. Os alimentos chegam de comunidades que ficam em um raio de 150 km de Eldorado, onde está a sede.
O plano foi organizado com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), que presta assessoria às comunidades do vale. Raquel Pasinato, bióloga e coordenadora do Programa Vale do Ribeira no ISA, conta que, com a pandemia, as parcerias para compra de alimentos da Cooperquivale foram suspensas. A produção ficou estocada.
Parte dos alimentos era vendida via Programa Nacional de Alimentação Escolar, para cidades do estado de São Paulo. Com a interrupção das aulas presenciais, a entrega de 38 toneladas de vegetais foi cancelada, sem previsão de retorno.
O ISA estima que na região existam 120 hectares plantados, o que equivale a 145 campos de futebol. Participam do plantio 1.290 cooperados, dos quais 55% são mulheres.
O plano emergencial liga patrocinadores e campanhas contra a fome às comunidades tradicionais. “Parceiros compram os alimentos da cooperativa e distribuem. A verba mantém a produção nas roças, assegura a renda nos quilombos e leva alimento orgânico para quem está vulnerável na capital”, diz a coordenadora.
“É uma campanha bonita, mas não deveria ser necessária”, afirma Douglas Belchior, professor e ativista da Coalizão Negra por Direitos. A coalizão reúne associações do movimento negro de todo o país e integra a campanha Tem Gente com Fome, que compra de produtores locais e da Cooperquivale para doar a pessoas em situação crítica.
“As entregas são em terreiros e coletivos da periferia. Cada coletivo já tem um mapeamento das famílias que precisam do alimento, e terreiros são um espaço importante de encontro das comunidades negras.”
Os quilombos produzem até 70 tipos de alimento, entre variedades de banana, cará, mandioca, milho e arroz. “Foi um espanto ver essa variedade de frutas, legumes e verduras”, diz o professor de educação física Lula Santos, 47, da associação de moradores do Jardim São Remo.
Essas doações, ele diz, contribuíram para a formação de um vínculo entre a população negra urbana, das periferias e favelas, e quilombolas. “Temos planos de ir até os quilombos, conhecer o plantio e pensar em trocas de conhecimento que podemos fazer.”
As doações chegam mensalmente nas comunidades urbanas e devem seguir até janeiro de 2022.
Os alimentos da Cooperquivale são produzidos a partir do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido em 2018 como patrimônio imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) .
“A prática é ancestral, e compreende não só o plantio e a colheita, mas todo o alicerce cultural dessas comunidades”, explica Raquel Pasinato.
A roça quilombola, chamada de coivara, é itinerante. A plantação fica no local por um tempo e depois é abandonada para que a mata nativa retorne, permitindo a regeneração da flora. Na área escolhida para plantio, em geral pequena, de até dois hectares, há a derrubada da mata e a queima do material orgânico.
“O processo acontece com pausas, para que a matéria orgânica da derrubada e da queima, que é controlada, ajude a nutrir o solo”, diz a bióloga.
“Na colheita, antes da pandemia, aconteciam mutirões que envolviam toda a comunidade. Depois, havia festa, música e danças. Todo o processo é muito coletivo”, explica. Na Amazônia, ribeirinhos praticam sistemas parecidos.
Para que a coivara seja sustentável é preciso uma área de floresta com baixa densidade populacional. “Não pode ser feito em grande escala, ou em qualquer região agrícola, é preciso respeitar o tempo e a produtividade do solo”, diz.
O agrônomo Mauricio Biesek, assessor do ISA, diz que as roças quilombolas fazem o manejo da paisagem. O plantio e a extração dos alimentos não ferem a floresta, mesmo com área plantada expressiva.
Ele diz que, no próprio Vale do Ribeira, há preconceito com a produção quilombola, tanto da população das cidades quanto de autoridades de fiscalização, que associam a coivara a prejuízos ao ambiente e a agricultura atrasada. “O fato de a região ter uma mata preservada tão extensa com comunidades que estão há mais de 300 anos no território mostra o contrário.”
Por essas e outras, o reconhecimento do Iphan foi importante, afirma a moradora do quilombo São Pedro e diretora fiscal da Cooperquivale, Valni de França Dias, 51.
“A gente agora pode reforçar nossas origens, falar para nossos filhos, mesmo eles tendo estudo, ou saindo daqui, que são bem-vindos para voltar.”
Foi assim com seu filho Luiz Marcos, 34, professor na escola estadual que atende alunos de sete quilombos, inclusive o da região em que ele cresceu. Luiz cursou letras na Universidade São Francisco, em Itatiba (SP), há 305 km de Eldorado. Em 2013, lecionou na periferia de São Paulo e voltou ao quilombo após um ano.
Ele diz que, apesar das diferenças entre zonas rural e urbana, as lutas da juventude negra são semelhantes. “Os jovens na periferia lutam para sobreviver à violência. Aqui, também lutam, para sobreviver à falta de infraestrutura.”
Junto aos pais, o professor acompanhou a luta pela regularização do território. ??Nasci nos braços da resistência.??
Registros da formação do quilombo São Pedro datam do início do século 19. Entre o grupo de homens e mulheres que se instalou ali estava Bernardo Furquim, tataravô de Valni, a mãe do Luiz.
A comunidade só teve suas terras reconhecidas pelo estado em 1988, e a questão fundiária ainda é um desafio.
Levantamento do ISA apontou sobreposição de imóveis privados em 43% das áreas quilombolas do vale. Biesek diz que boa parte da atuação do instituto é auxiliar nos processos de regulamentação.