SALVADOR, BA, IBIRAPITANGA, BA (FOLHAPRESS) – O sol de primavera arde em um céu quase sem nuvens. Mas, sob a sombra de jequitibás, gameleiras, sapucauias e outras espécies da mata atlântica, o clima é fresco para os cacaueiros do assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, cidade do sul da Bahia a 360 km de Salvador.
Com cestos de vime nas costas, os agricultores partem para a colheita do cacau, que será quebrado, debulhado, fermentado e secado em estufas. Uma parte seguirá para fábricas de chocolates finos, outra será processada dentro da própria fazenda.
Com 40 famílias, o assentamento ilustra o sucesso de um modelo que ganha espaço no sul da Bahia: a produção de cacau orgânico e agroecológico.
Com o apoio de uma rede colaborativa que atua no financiamento, na assistência técnica e na comercialização, a produção de cacau por agricultores familiares deslanchou nos últimos cinco anos.
O cultivo segue a técnica cabruca, na qual as árvores são plantadas aproveitando o sombreamento da mata nativa, e práticas agroecológicas.
Além de cultivar o produto sem agrotóxicos, queimadas ou adubos químicos, esse modelo de produção valoriza a diversidade dos produtos, o trabalho coletivo e o saber local das comunidades rurais.
A semente do assentamento Dois Riachões data de 2001, quando agricultores sem-terra ligados ao Ceta (Coordenação Estadual de Trabalhadores Assentados e Acampados) ergueram um acampamento nas margens da BR-101.
Em 2007, eles ocuparam uma fazenda em Ibirapitanga que estava improdutiva desde a eclosão da vassoura-de-bruxa, praga que dizimou lavouras e arruinou a região sul da Bahia nos anos 1990.
A posse da terra só veio em 2018. Mas desde 2015 os agricultores se dedicam à produção do cacau de qualidade e a outras 35 culturas complementares, incluindo frutas, verduras, grãos e hortaliças.
“Nossa história começa com a luta dos movimentos sociais. Conseguimos avançar na produção agroecológica, o que abriu portas para parcerias”, afirma Tereza Santiago, 36, agricultora do assentamento e membro da Rede de Agroecologia Povos da Mata.
A produção e o beneficiamento do cacau nos assentamentos ganhou tração após parcerias da rede com o Instituto Ibi de Agroecologia e a gestora de projetos Tabôa Fortalecimento Comunitário.
Juntas, as três entidades formaram a Muká Plataforma Agroecológica, responsável por um conjunto de projetos que apoia produtores em cinco eixos: produção, beneficiamento, comercialização, crédito e certificação orgânica.
Desde que a plataforma colaborativa teve início, em 2019, cerca de 700 agricultores de assentamentos e comunidades rurais da Bahia foram atendidos com assessoria técnica, capacitações em manejo agroecológico e acesso a microcrédito rural.
A Tabôa passou a atuar em assistência técnica e financiamento, criando um fundo para ajudar agricultores da região que praticam agroecologia.
O fundo começou com R$ 50 mil para crédito aos produtores do sul da Bahia. Mas superou R$ 1 milhão após a emissão de CRAs (Certificados de Recebíveis do Agronegócio) ?títulos de renda fixa lastreados em recebíveis de negócios entre produtores rurais.
Nessa operação-piloto, cada agricultor recebeu, em média, R$ 7.000 em crédito para investir em produção e beneficiamento de cacau, impactando 195 famílias que atuam em uma área de 816 hectares, sendo 400 deles certificados.
A operação, classificada como de finanças híbridas, inclui recursos de mercado, que financiam o crédito, e recursos filantrópicos, investidos na assistência técnica. Além do retorno financeiro, os investidores recebem um relatório anual sobre o impacto social e ambiental do título.
A Muká também oferece assistência técnica a 230 agricultores e os auxilia na comercialização, para evitar os atravessadores.
“A assistência técnica sem crédito não vai muito longe. E o crédito sem assistência técnica é muito arriscado. E os agricultores também precisam ter para quem vender. Essa visão integrada é o que faz o trabalho funcionar”, afirma Roberto Vilela, diretor-executivo da Tabôa.
A integração tem dado certo, de acordo com ele. A linha de crédito registra menos de 1% de inadimplência.
Com treinamento e crédito, os agricultores agregaram valor aos seus produtos e acessaram novos mercados. Os produtos passaram a ser vendidos em feiras e empórios de cidades do entorno.
Também chegaram ao mercado paulista por meio da Estação São Paulo, espécie de entreposto que comercializa produtos de cerca de 11 mil agricultores ligados a redes agroecológicas do país.
No assentamento Dois Riachões, o novo modelo representou uma mudança e tanto para agricultores de uma região na qual a produção esteve restrita, por séculos, aos chamados coronéis do cacau.
“A reforma agrária e a agroecologia nos deram essa liberdade. A gente antes não tinha o direito nem de chupar uma cabaça de cacau, porque os jagunços não deixavam. Hoje, cada família tem 4.000 pés”, diz o agricultor Rubens Dário Fróes, 33, que faz parte da rede Povos da Mata.
Ele lembra que alguns agricultores mais antigos, que trabalharam a vida inteira em grandes fazendas de cacau, nunca tinham provado um chocolate, principal produto final da lavoura.
Aos 60 anos, Zerisvaldo Santos trabalhou a maior parte da vida como tropeiro, conduzindo rebanhos de fazendeiros do sul da Bahia. Agora, produz o próprio cacau e também planta hortaliças no assentamento.
Além de cultivo, os agricultores passaram a investir no beneficiamento do cacau, ampliando o rendimento médio das famílias. Em vez de vender o cacau in natura, eles investiram em tanques de fermentação e estufas para a secagem das sementes.
O passo seguinte foi arrecadar R$ 56 mil para a construção de uma pequena fábrica de chocolates. O processo ainda é artesanal, mas rende quatro quilos por dia.
Por enquanto, só 3% da produção é transformada em chocolate no assentamento. A ideia é que essa proporção aumente nos próximos anos, a partir do incremento do maquinário da fábrica.
A maior parte do cacau selecionado é vendida para fábricas de chocolates orgânicos finos. O assentamento Dois Riachões fornece para as marcas AMMA, Dengo, Kalapa e Maré, que trabalham no nicho da produção a partir do cacau de qualidade.
Fundador e proprietário da AMMA Chocolate, o empresário Diego Badaró afirma que o elo com os produtores dos assentamentos vai além da compra do cacau.
“É um trabalho integrado com muitas camadas de relacionamento, para que a gente não mantenha relação linear de compra de matéria-prima, mas troque conhecimento, projetos e possibilidades de anexar complexidade a essa rede”, diz.
Ele destaca a importância de os produtores terem a própria fabricação do chocolate, dominando a cadeia de ponta a ponta. “Você não precisa ser um fornecedor do cacau commodity para a grande indústria. Pode transformar o grão na sua própria terra.”
O modelo de produção de Dois Riachões está sendo replicado para outros quatro assentamentos da região, que começam a ter crédito para investir no manejo da terra e no beneficiamento. Juntos, os assentados produziram 3.000 arrobas de cacau em 2020, sendo 50% de cacau de qualidade.
Hércules Saar, presidente da rede Povos da Mata, diz que o modelo agroecológico tem encontrado respaldo.
“Cada dia encontro agricultor novo buscando chegar onde estamos aqui. É uma vitória da sociedade. Que isso possa se expandir por todo o país.”