Ritmo de avanço tecnológico está acima da nossa capacidade de avaliação, diz futurista Amy Webb

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nas últimas semanas, um novo escândalo envolvendo a rede social Facebook passou a estampar as manchetes de grandes jornais ao redor do mundo, após uma ex-diretora da empresa, Frances Haugen, fazer denúncias contra as práticas adotadas pela rede social.
Neste cenário, em que a pandemia acelerou de maneira acentuada o processo de digitalização, aumentando o poder nas mãos das big techs, a futurista Amy Webb alerta que a velocidade com que a tecnologia tem avançado é superior à nossa capacidade de refletir sobre as implicações desse processo no longo prazo.
“Já há tanto dinheiro envolvido nesse momento, que as grandes companhias de tecnologia não querem diminuir o ritmo e ter de se questionar eticamente sobre as escolhas que têm sido feitas”, afirmou Amy, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Na recente denúncia contra o Facebook, a ex-funcionária aponta documentos indicando a rede social confusa com os próprios algoritmos e dificultando o combate aos discursos de ódio por meio da plataforma.
Especialista em desenhar possibilidades de cenários futuros para grandes empresas e governos, a fundadora do Future Today Institute diz que a disseminação de notícias falsas pelas mídias sociais é um dos grandes desafios a serem enfrentados pela sociedade na era moderna.
“Notícias falsas sobre políticas são um grande problema. Agora, notícias falsas sobre saúde pública são uma catástrofe. A pandemia global é, em parte, resultado da falta de informação”, afirmou a especialista.
Amy disse ainda que ser flexível é uma das principais características necessárias que as empresas precisam ter em mente para conseguir atravessar os diferentes ciclos econômicos de forma bem-sucedida. A centenária empresa de jogos Nintendo foi apontada como um exemplo assim.
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Pergunta – Quais impactos a pandemia trouxe de maneira permanente para o nosso futuro?
Amy Webb – Espero que possamos olhar para tudo o que está acontecendo por conta da pandemia como uma oportunidade para aprender. O Brasil, e também os EUA, estão uma situação ruim porque não planejaram o futuro.
Parte de um bom planejamento passa pela tomada de decisões acertadas, e por uma boa preparação. E muitos de nossos líderes não estão bem preparados para lidar com a incerteza. Em vez disso, eles preferem adotar uma visão bastante inflexível em relação a como pode vir a ser o futuro. Esse pode ser um tipo de previsão perigosa.
Trabalhar de casa nunca tinha sido uma possibilidade para muitas empresas e instituições de ensino. E com a pandemia, conseguimos ver como isso pode ser útil e trazer diversos benefícios. No entanto, também percebemos que muita gente ainda não tem acesso à internet.
A pandemia jogou luz sobre problemas que já existiam, mas que até então não recebiam atenção suficiente que pudesse levar à busca por melhorias. Agora, avançar nessas frentes é ainda mais importante. Não é a situação ideal, mas pelo menos mudanças devem ocorrer.

Obras de distopia traçam frequentemente um cenário sombrio sobre o papel da tecnologia em nossas vidas nos próximos anos. Como a sra. acredita que será essa evolução?
AW – O futuro é necessariamente um episódio de Black Mirror? Não precisa ser. Mas isso significa que precisamos fazer escolhas melhores. E termos algumas conversas difíceis a respeito de quem deveria usar essas novas ferramentas digitais muito poderosas que têm surgido, quem são as pessoas que devem ficar encarregadas sobre elas. E se precisamos tomar medidas em relação a essas tecnologias, para garantir que elas não causem mais problemas.
O problema não é a ciência ou a tecnologia em si, o problema são as pessoas, e como nos utilizamos dessas ferramentas. A questão é que a tecnologia está avançando em uma velocidade acima da nossa capacidade de pensar a respeito de quais podem ser as implicações desse processo, ou de criar regras ou algum tipo de parâmetro.
E já há tanto dinheiro envolvido nesse momento, que as grandes companhias de tecnologia não querem diminuir o ritmo e ter de se questionar eticamente sobre as escolhas que têm sido feitas, sobre o mau uso dessas tecnologias.

A regulação é um caminho necessário?
AW – Não acho que a regulação seja a resposta, porque se você diz para uma companhia que ela não pode fazer determinada atividade, isso não funciona. E vão se passar anos em uma luta em vão, com o problema ficando cada vez pior.
Acredito que a punição também não seja o melhor caminho para fazer com que as companhias de tecnologia mudem seu comportamento. É preciso uma abordagem mais sofisticada.
No entanto, nos EUA, os políticos estão constantemente preocupados em se reeleger. Vocês têm problemas semelhantes no Brasil. Por isso, é preciso encontrar uma forma de separar a política da tecnologia. E está ficando cada vez mais difícil de se conseguir fazer isso.

A disseminação de notícias falsas é um dos grandes desafios de nossa época?
AW – Sim. Importante dizer que notícias falsas sobre políticas são um grande problema. Mas notícias falsas sobre saúde pública são uma catástrofe. A pandemia global, em parte, é resultado da falta de informação.
O que enxergo no horizonte é o desenvolvimento de novas tecnologias como a chamada biologia sintética, em que componentes biológicos, como o DNA e as células, podem ser redesenhados com novos propósitos.
O que quero dizer com isso é que hoje já temos um grande problema com a falta de informação, o que ficou muito claro na pandemia, sendo que o nível em que a ciência se encontra ainda não é assim tão complexo.
Você consegue imaginar como isso irá evoluir nos próximos anos? Teremos a oportunidade de resolver grandes questões relativas ao meio ambiente, à qualidade de vida e longevidade, e o nível médio de conhecimento das pessoas será cada vez menor. Por isso que é preciso lidar com o problema da falta de informação agora, e não postergar para o futuro.

Quais os principais diferenciais competitivos necessários para uma empresa conseguir ter sucesso nas próximas décadas?
AW – Tenho uma palavra para te responder essa pergunta: flexibilidade. As empresas precisam aprender a confrontar suas crenças e se valer de novas fontes de informação. O mundo está em constante transformação, com mudanças que vêm de diferentes setores da economia.
E em períodos de grande volatilidade e incerteza, muitas empresas, e também governos, tendem a querer adotar uma postura mais conservadora, focar naquilo que eles têm controle, e acabam se tornando muito inflexíveis às mudanças.
Para um negócio prosperar, é preciso ter claro qual seu objetivo e quais as metas a serem alcançadas no futuro, mas também ser flexível.
Um exemplo que posso citar nesse sentido é o da Nintendo. Muitas pessoas acham que a empresa foi criada na década de 1980, por conta do sucesso de jogos como Super Mario e Donkey Kong. E a companhia até foi fundada mesmo na década de 80, só que dos anos 1800 [a empresa foi fundada em setembro de 1889]. Ela sempre atuou no setor de jogos, e começou suas atividades fazendo jogos de tabuleiro e de cartões impressos, o que exigia um ecossistema bastante específico para a fabricação dos produtos já naquela época.
Algo que a Nintendo sempre fez muito bem foi estar atenta às novas tendências. É uma companhia especializada em jogos e entretenimento, mas com muita flexibilidade em relação a como fazer isso e aberta a trazer inovações de fora.
Quando as televisões começaram a surgir, a empresa criou o console para ser plugado nos aparelhos. Quando as pessoas passaram a frequentar mais os shoppings, a Nintendo adaptou seus jogos para grandes máquinas e ajudou a criar os fliperamas. Recentemente a empresa lançou um parque temático no Japão baseado em realidade virtual.
Essa é uma empresa que já poderia ter morrido diversas vezes ao longo de sua história, mas que veio sempre acompanhando a evolução do mercado e se mostrou extremamente resiliente. É um bom exemplo para qualquer empresa de como se concentrar no que você faz bem, mas com flexibilidade para saber como fazer isso da melhor maneira possível. E a Nintendo ainda produz até hoje seus cartões impressos em papel, que, por sinal, são bastante caros.
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Raio-X | Amy Webb, 47
Amy Webb nasceu em 18 de outubro de 1974 em Chicago, nos EUA, e é fundadora do Future Today Institute, empresa de tecnologia baseada em análise de dados especializada na projeção de cenários para grandes empresas e organizações intergovernamentais.
Amy foi apontada pela Forbes como “uma das cinco mulheres que estão mudando o mundo”, e listada entre as 100 mulheres de 2020 pela BBC. Ela é professora na Stern School of Business, da Universidade de Nova Iorque, onde desenvolveu e ministra um MBA de previsão estratégica.

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