RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) debate nesta quinta-feira (21) as primeiras duas autorizações ferroviárias do novo marco legal das ferrovias, em um processo que se tornou alvo de disputa judicial e é visto pelo setor como um atropelo às discussões sobre o tema no Congresso.
Os pedidos que serão analisados pela agência foram feitos pela VLI Logística para trechos no Mato Grosso e em Minas Gerais. A Rumo Logística tentou suspender a análise na Justiça, alegando que a análise está sendo feita “a toque de caixa” para beneficiar a concorrente.
Relator de projeto sobre o tema no Senado, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) critica “afobação” do governo para impor as regras do novo marco ferroviário, celebrado pelo ministério como um ponto de guinada dos investimentos no setor.
O marco foi estabelecido pela MP (medida provisória) 1.065, de 30 de agosto, que abriu a possibilidade de que ferrovias sejam construídas apenas com autorizações do governo, sem necessidade de leilões e contratos de concessão.
O tema já vinha sendo debatido pelo Congresso, em projeto de lei proposto em 2018 pelo senador José Serra (PSDB) e aprovado pelo Senado no início do mês, mas o governo decidiu acelerar o debate depois que estados começaram a aprovar leis próprias sobre autorizações ferroviárias.
Na última sexta (15), mesmo após acordo com o Congresso para deixar a MP caducar, o Ministério da Infraestrutura publicou portaria regulamentando o processo de autorizações, com texto que contraria tanto o projeto aprovado pelo Senado quanto a própria MP proposta pelo governo.
A portaria diz que, caso um trecho tenha mais de um interessado, a autorização pode ser concedida àquele que chegou primeiro, enquanto MP e projeto de lei preveem um processo mais detalhado de escolha do melhor projeto, inclusive com chamada pública para identificar outros interessados.
As regras foram publicadas quando 19 empresas já haviam apresentado requerimentos para autorização de trechos. Em ação na Justiça, a Rumo defende que é ilegal o critério de ordem de chegada, já que beneficiaria aqueles que apresentaram propostas antes que a regra fosse estabelecida.
“É como se uma licitação para aquisição de determinado produto pela administração [pública] tivesse sido iniciada, com a apresentação das propostas pelos licitantes, sendo que, após isto, houvesse a retificação do edital para estabelecer um novo critério”, diz a ação.
O modo como o processo foi conduzido, afirma a empresa, cria um conceito de “prioridade retroativa”. “Diante disto, haverá flagrante ofensa às normas e aos princípios de direito administrativo e tolherá o direito de participar de um processo democrático e pautado no melhor interesse público.”
A Rumo queria suspender a avaliação dos projetos da VLI, mas teve pedido de liminar negado. À Folha, o Ministério da Infraestrutura disse que a autorização a uma empresa não impede que concorrentes apresentem novos projetos para os mesmos trechos.
“A máxima concorrência vem justamente na competição entre duas ferrovias independentes atendendo a mesma localidade”, defendem, em nota, o ministério. “Escolher uma ferrovia em detrimento de outra é uma solução subótima e não é o critério de desempate.”
A visão é questionada pelo mercado, já que dificilmente seria viável a construção de duas ferrovias paralelas para concorrer por um mesmo mercado. A competição, dizem especialistas, deveria se dar pelo direito de construir o trecho.
O projeto de lei propõe uma disputa pelo melhor bônus de outorga em caso de mais de um interessado por cada trecho. O senador Jean Paul Prates diz que o critério da ordem de chegada provoca “uma corrida maluca de projetos” e vai contra os objetivos de melhorar a infraestrutura logística do país.
“Ferrovia é infraestrutura tendente a monopólio natural”, afirma. “Quando escolhe um projeto tem que ser com visão de futuro, de expansão, de mercado a atender. Não é para ser automático, é para ser um diálogo entre quem planeja e quem quer investir.”
Nesta quarta (20), em pronunciamento no Senado, ele chamou o recebimento dos requerimentos de “apressado e inadequado”, pediu à ANTT que suspenda as análises e propôs um decreto legislativo para sustar os efeitos da portaria.
A advogada especialista em concessões Letícia Queiroz, do escritório Queiroz Maluf, concorda que a ordem de apresentação dos requerimentos não é o melhor critério para a resolução de conflitos entre os projetos.
“Disputa é sempre bom para ver qual é o melhor projeto, qual a melhor condução, avaliar melhor outorga, etc”, diz. “Pode até ser quem chega primeiro, mas desde que tenha um bom projeto, desde que o projeto seja viável.”
A MP gerou o programa Pró-Trilhos, lançado no início de setembro em evento no Palácio do Planalto pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas.
Tem hoje 19 requerimentos já feitos, com um investimento previsto de R$ 81 bilhões. O mercado, porém, entende que muitos deles foram feitos sem estudos detalhados de viabilidade e têm poucas chances de sair do papel.
Não seria o caso dos trechos em disputa pela VLI e Rumo, que ligam polos de produção agrícola a ramais ferroviários já em operação ou em construção. O trecho entre Uberlândia e Chaveslândia, em Minas Gerais ligaria a ferrovia Norte-Sul à malha da VLI para escoamento de produção agrícola e de basalto.
Já o trecho entre Lucas do Rio Verde e Água Boa, no Mato Grosso cria mais um canal de escoamento da safra de grãos do estado pela ferrovia Norte-Sul, passando pela Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), hoje em construção pela Vale.
Nem Rumo nem VLI quiseram comentar o assunto.