Tipo de ocupação prejudica negros, e alta fecundidade, os mais pobres, diz economista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre os 10% com menor rendimento per capita no Brasil, 75,2% são pretos ou pardos. No estrato dos 10% mais ricos, eles são apenas 27,7% –embora constituam mais da metade da população (55,8%).
Quando estão trabalhando, os pretos e pardos recebem, em média, cerca de 58% dos rendimentos dos brancos, segundo o informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE.
Divulgado alguns meses antes do início da pandemia, o levantamento mostrava que cerca de dois terços dos desempregados e subutilizados (trabalhando menos do que gostariam) eram pretos e pardos.
Para o economista e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, Michael França, que é colunista do jornal Folha de S.Paulo, dados como esses mostram o Brasil ainda está um passo atrás dos países que procuram equiparar salários de negros e brancos.
“Precisamos primeiro corrigir a questão ocupacional, que acabará tendo impacto nos salários”, diz.
França afirma que entre as “diversas dimensões” da pobreza, o Brasil precisa encarar também a fecundidade.
Segundo a FGV Social, enquanto há 2,9 pessoas em domicílios da classe A/B (renda mensal acima de R$ 8,3 mil), são 4,6 indivíduos na classe E (até R$ 1.205).
Segundo o IBGE, o registro de gravidez entre meninas de 13 a 17 anos é maior nas escolas públicas e no Nordeste, região que concentra cerca da metade dos pobres brasileiros.
“O diferencial de fecundidade entre ricos e pobres tem impacto não somente na desigualdade e na pobreza contemporâneas, mas na futura, até 40 anos à frente”, diz França
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Pergunta – Como a questão racial ajuda a perpetuar a pobreza?
Michael França – O viés racial vai afetar a dinâmica social por diversos fatores. No caso das crianças, você tem um impacto brutal na autoestima. Os modelos sociais dessas crianças vão ser totalmente diferentes. As que nasceram com a pele mais clara podem se identificar com modelos brancos, como médicos e advogados, enquanto a negra, não. É isso inclusive o que a gente vê na televisão.
A pobreza, por si só, já é muito difícil de ser superada. A questão racial vai interagir ao longo de toda a vida, gerando um custo adicional. Uma pessoa negra que nasce num ambiente pobre vai ter menos recursos para se desenvolver. Mas, se ela tiver uma motivação, modelos sociais para seguir, isso pode aumentar um pouco a chance de romper o ciclo.
Quando olhamos para a questão racial, não há tantos modelos na sociedade brasileira para seguir. Ou eles não têm a mesma visibilidade que os brancos. É preciso tentar diminuir esse viés racial, trazendo maior representatividade e modelos sociais.
Eu gosto de imaginar o seguinte: vamos pegar uma criança que nasce na sociedade brasileira sem contato algum com o racismo. Ela vive numa bolha. Quando sair na rua, ela vai perceber que a desigualdade brasileira está intimamente relacionada com a desigualdade racial.
Vai ver que os brancos têm maior poder aquisitivo, carros e ocupações melhores, enquanto a população negra vai estar em papéis de subordinação.
Ela vai ver que a maior parte das piores ocupações estará representada por pessoas negras. Isso pode afetar a percepção racial dessa criança, mesmo que ela não tenha tido contato nenhum com o racismo. Ela vai relacionar certas características positivas à fisionomia branca; e características negativas, à negra.
Quando essa criança chegar à escola, ela também vai ver que todos os papéis de liderança estão relacionados aos brancos. Durante o ensino, os negros vão aparecer na escravidão, novamente em posição de submissão. No caso brasileiro, essa dimensão é mais grave, pois a população negra está em proporção maior abaixo da linha da pobreza e em vulnerabilidade social.
E é evidente que ter negros em papéis importantes na sociedade vai influenciar as crianças, que poderão se espelhar nessas pessoas, que serão uma inspiração. No futebol de antes do Pelé, havia um debate grande sobre ter ou não jogadores negros. Depois dele, a quantidade de jogadores negros que tiveram espaço foi enorme.

O Brasil adotou a partir de 2012 o sistema de cotas raciais para democratizar o acesso ao ensino superior e tentar diminuir a desigualdade racial e social. Qual a sua avaliação desse percurso?
MF – Quando eu estava na escola, era muito interessante olhar a perspectiva daquele ambiente. A maioria não queria estudar por achar que iria virar empregada doméstica ou acabaria trabalhando num lava jato.
Os próprios professores não falavam de ensino superior, pois isso não fazia sentido. Só vim a saber da existência do ensino superior no primeiro colegial. Foi assim que eu decidi ascender socialmente. Mas, se eu soubesse das probabilidades, talvez tivesse feito outra escolha. Foi muito difícil.
O ensino superior para os pobres, sobretudo os negros, era realidade muito distante. A partir do momento em que muitos viram primos e amigos entrando na faculdade, isso mudou a dinâmica de muitos jovens das periferias. A educação passou a ter outra conotação, a ter um certo valor.
Mas, depois desse período de alto investimento, em tempo e recursos em faculdades privadas, acabou sendo muito chocante para essas famílias que, ao final, muitos não conseguiram ter retornos desse investimento.
Muitos achavam que o ensino superior seria a chave do sucesso, e isso mexeu com a população. Muita gente acabou formada, mas desempregada no final, o que causou uma extrema indignação. Muitos acabaram virando apoiadores fanáticos do presidente [Jair] Bolsonaro. Toda essa dinâmica dos últimos dez anos é muito interessante, pois há frustração enorme de terem investido e gastado tanto tempo sem retorno.
Mas a questão das cotas é mais profunda do que aparece no debate. Nas décadas de 1980 e 1990, a identidade negra era muito desvalorizada. Havia até uma tendência entre os negros de quererem se embranquecer para ter ascensão social. Mulheres faziam chapinhas e homens cortavam o cabelo curto para não revelar características da fisionomia negra.
Por isso as cotas vão além da questão do acesso ao ensino superior. Até então, a questão racial era discutida em pouquíssimos setores da sociedade. As cotas levaram a um processo de valorização da identidade negra. Se olharmos as Pnads [Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, do IBGE], o percetual da população se identificando como pretos e pardos cresceu significativamente desde então.

Mas, até aqui, principalmente por causa do baixo crescimento da economia nos últimos anos, as cotas não trouxeram resultados significativos para a ocupação dos negros. Como avalia isso?
MF – Podemos considerar duas dimensões em relação às diferenças salariais entre negros e brancos no Brasil. Há disparidades salariais entre brancos e negros na mesma ocupação. Mas o grosso da diferença vem do diferencial de ocupações.
Os brancos estão em ocupações que pagam mais. São CEOs de empresas, estão em cargos administrativos, enquanto os negros continuam na base, mesmo se tiverem educação equivalente.
No Brasil, creio que devermos primeiro nos preocupar com a questão ocupacional, e não apenas salarial. Nos Estados Unidos há um importante debate sobre paridade salarial. Aqui, ainda estamos um passo atrás. Precisamos primeiro corrigir a questão ocupacional, que acabará tendo impacto nos salários.
Mas todas essas questões de inclusão dos negros não são triviais e precisam ser endereçadas com cuidado. Pois pode-se acabar favorecendo determinados grupos em detrimento de outros, o que pode gerar conflitos. A longo prazo, isso pode gerar uma piora nas relações raciais no Brasil.
Se olharmos o Brasil de alguns anos atrás, não imaginaríamos uma polarização tão forte entre esquerda e direita. Mas a sociedade tem criado mecanismos que levaram a isso.
O mesmo pode vir a acontecer com a questão racial se ela não for bem endereçada. O que precisamos tentar é ter cada vez mais um debate inclusivo e instrutivo, baseado em fatos e evidências, e menos em ideologia.

Falar em taxa de fecundidade das mulheres mais pobres parece tabu. Mas, segundo dados da FGV Social, há mais indivíduos nas famílias da classe E, dividindo uma renda bem menor, do que na A/B. Qual sua opinião sobre o assunto?
MF – A pobreza tem diversas dimensões interconectadas. Quando olhamos para a fecundidade, essa discussão acabou ficando em segundo plano no Brasil.
Sabemos que a fecundidade caiu no Brasil de forma importante. Mas isso esconde o fato de que, quando se condiciona por renda e escolaridade, há uma heterogeneidade na fecundidade muito acentuada.
Se analisarmos o período da década de 1970 para cá, vamos ver que as famílias mais pobres tiveram muita dificuldade de planejar seu perfil reprodutivo. O contrário ocorreu entre as mulheres mais ricas, que tiveram menos filhos e puderam adiar essa decisão.
O diferencial de fecundidade entre ricos e pobres tem impacto não somente na desigualdade e na pobreza contemporâneas, mas na futura, até 40 anos à frente.
Dado que famílias com mais filhos têm renda per capita menor, a possibilidade de uma criança de família numerosa ascender socialmente é muito mais baixa. Um filho a mais, em última instância, implica que a chance daquela criança permanecer na pobreza é maior.
Ao longo do tempo, sendo a proporção de pobres cada vez maior que a de ricos, esse fator demográfico torna o país mais pobre e menos escolarizado, com impactos no crescimento e na produtividade da economia. Essa é uma importante questão a ser considerada.

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