'Fatias do bolo'

Planejamento sucessório: como evitar "dor de cabeça" com herança

A sucessão patrimonial é importante para proteger o patrimônio familiar e permitir que todos os herdeiros sejam atendidos de acordo com a vontade do sucessor

Planejamento sucessório
Planejamento sucessório (Foto: Freepik)

De forma inesperada, alguém morre, deixando três filhos de casamentos diferentes, um processo de divórcio em aberto e nenhum tipo de planejamento sucessório. Quase uma década depois, não há resolução quanto ao espólio e, como consequência da batalha judicial, a relação entre os irmãos foi perdida, assim como parte da herança.

Parece enredo de novela, mas é a história de Luana (nome fictício) – uma das personagens do imbróglio judicial que envolve a herança de seu pai, que faleceu em 2015. Até hoje, um conjunto de desacordos, resultado da falta de planejamento sucessório, barram o processo de partilha de bens.

O caso é reflexo de uma realidade que abrange as famílias que evitam a divisão com antecedência dos bens. A sucessão patrimonial é importante para proteger o patrimônio familiar e permitir que todos os herdeiros sejam atendidos de acordo com a vontade do sucessor dos recursos. Além disso, esse instrumento possibilita uma transmissão de herança muito mais estratégica, rápida e menos burocrática.

“Muitas vezes as pessoas não se preparam para o momento de ir, principalmente quando ainda são jovens. Então, não há preocupação em deixar um testamento, fazer um seguro patrimonial, por exemplo, alternativa que descobri depois. Isso acaba deixando muita abertura para que as pessoas leiam as situações de forma que as favoreçam. Foi o que aconteceu quando perdi o meu pai”, conta Luana.

Tipos de planejamento sucessório

A organização prévia em relação à partilha de bens, a partir do planejamento sucessório, poupa tempo, energia e, acima de tudo, dinheiro, já que evita, por exemplo, gastos excessivos com processos judiciais.

Mas, afinal, como planejar a sucessão de bens de modo que esta seja bem-sucedida? A resposta, na verdade, não é tão genérica, já que é preciso avaliar as demandas e o perfil da pessoa em relação à tolerância e complexidade.

Holding Familiar e Seguro Patrimonial

Com pouco tempo de história no Brasil – cerca de 40 anos – as holdings, no âmbito empresarial, são sociedades gestoras matrizes de participações sociais, que exercem controle ou “seguram” outras empresas. No caso das holdings familiares, o intuito é proteger o patrimônio de pessoas físicas de uma mesma família.

De acordo com a advogada especializada em direito da Família e Sucessões, Rita Bonelli, as holdings patrimoniais podem contemplar bens imóveis e móveis e tem como objetivo a titularização do patrimônio e gestão menos complexa.

No geral, os instituidores sócios detentores do patrimônio principal são os pais, que transmitirão aos filhos a futura herança composta pela criação da empresa a partir da integralização dos bens de sua titularidade.

A advogada chama atenção, no entanto, para a ideia equivocada de que a holding está atrelada a uma forma pouco republicana de transmissão dos bens e isenta de riscos e sem incidência tributária.

“Na verdade, o planejamento sucessório visa diminuir riscos e mitigar a incidência tributária ao longo dos anos, uma vez que a administração do patrimônio ocorrerá através de uma pessoa jurídica e não frustrar o legítimo interesse de herdeiros ou credores”, explica.

Na hora de avaliar qual alternativa seguir para iniciar o planejamento, é importante analisar o perfil do cliente e a complexidade da herança, destaca o Head de Seguros da SVN, Ramon Peres. No caso da holding, apesar de não haver um valor mínimo estipulado, é preciso estratégia, já que existe um custo de tributação.

“Ao pensar em uma holding, é preciso avaliar o objetivo principal. Se for apenas para proteger um patrimônio, pode ser mais atrativo, por exemplo, fazer um seguro para a sucessão, porque ele irá cumprir bem o papel da sucessão com a liquidez do recurso” explica Ramon.

“Ao invés de descaptalizar para a doação em vida, é possível liberar o recurso para outros investimentos e faz através de causa mortis, usando o recurso do instrumento sucessório através do seguro”, completou.

O Head de Seguros da SVN ressalta ainda que o valor pago para o instrumento sucessório é acumulado e pode ser resgatado futuramente. “Há uma preservação de recursos muito interessante quando é construída uma holding ou feito um seguro”.

Ainda segundo Peres, os instrumentos são complementares e podem ser ambos utilizados para preservar o patrimônio de uma mesma família. É possível usar o seguro na holding, por exemplo, para uma possível transferência de cota.

Fundos exclusivos

Conhecidos também como fundos personalizados, os fundos exclusivos são uma escolha atrativa para o planejamento sucessório. Os investidores que possuem alta renda em busca de retornos substanciais em seus investimentos.

Se tratando de planejamento sucessório, essa modalidade se destaca por sua exclusividade, uma vez que o acesso a ela é limitado a um grupo restrito de indivíduos, geralmente com um capital considerável para realizar investimentos mais robustos.

Devido a essa característica singular, os fundos exclusivos visam a retornos mais atrativos do que outras opções mais genéricas disponíveis no mercado e acessíveis ao público em geral.

Regulamentados como outros investimentos, os fundos exclusivos precisam ser registrados na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para operar legalmente.

Fundos Offshore

As offshores são empresas e contas bancárias abertas em territórios onde há menor tributação. De acordo com Ramon, a manutenção para abrir e manter uma offshore é cara – por isso, o valor mínimo em investimento que justifique e gere compensação financeira é de R$ 1 milhão.

“Acaba sendo interessante para quem tem alguma questão que possa comprometer o patrimônio, já que dificulta a identificação do proprietário do investimento. Além disso, muitas vezes com as offshores tem isenção de imposto ou valor muito pequena, isso incentiva”, destaca o Head de Investimentos.

Heranças com planejamento não deixam dor de cabeça

Já para outro herdeiro, ainda em processo sucessório, porém mais avançado, a experiência foi justamente o oposto da de Luana. Segundo Cleraldo Andrade, houve um planejamento na partilha de bens e, nesse processo, todos os recursos que foram incluídos à esfera da holding patrimonial seguiram a programação destinada pelo autor da herança.

Ao BP Money, Andrade explicou que utilizou a ferramenta de holding patrimonial, uma das mais convencionais quando o assunto é proteção e planejamento da herança. Nesta situação, uma empresa é constituída e a divisão dos bens é feita por meio das cotas que os sócios possuem na holding patrimonial, recebendo uma quota com destino específico e percentagem determinada previamente pelo autor.

“Em caso de falecimento, eles já recebem essa herança, via distribuição de cotas, e tem o beneficio de não entrar em inventario, dessa forma evitando maiores encargos tributários, além da morosidade do sistema judiciário”, disse.

“É essencial ter uma assistência jurídica na hora de montar esse tipo de empresa, com a finalidade de sucessão. A parte mais difícil é não ter essa organização. “Muitas pessoas acham que não precisa fazer isso, e que o testamento basta, mas montar uma holding patrimonial ou uma offshore com finalidade de sucessão é extremamente importante”, completou Andrade.

Segundo ele, o que não foi incluído no contexto da holding, com o instrumento jurídico, agora segue a regulamentação brasileira de inventario e partilha dos bens.

De acordo com Iasmin Mello, especialista em wealth planning da SVN, a meta do planejamento sucessório é evitar o processo de inventário, embora nem sempre seja viável planejar completamente o destino de todo o patrimônio. Qualquer ativo restante na posse do autor da herança estará sujeito a um processo de inventário.

“É muito difícil o cliente fazer um planejamento sucessório de todo patrimônio, porque as contas bancárias dele, até de movimentação do dia a dia, continuam na sua pessoa física e precisam passar por um processo de inventário. Tudo que já foi feito, planejamento sucessório, as cotas já foram transmitidas em vida, não tem burocracia futura, somente realmente esse patrimônio que fica”, explicou a profissional.

Processo de inventário e partilha de bens 

Quando alguém falece, é necessário lidar com a divisão de seus bens. Isso pode ser feito de duas maneiras: pelo inventário judicial ou pelo inventário extrajudicial. 

No caso do inventário judicial, um processo complicado, caro e demorado, que acontece nos tribunais. Segundo Iasmin Mello, ele é usado quando não há acordo entre os herdeiros sobre a partilha dos bens. 

Já o inventário extrajudicial é mais simples: é feito em cartórios, por meio de um acordo entre os herdeiros. A profissional explica que este método é mais rápido e mais barato, mas só pode ser usado se todos os herdeiros concordarem e forem maiores de idade.

“O extrajudicial costuma ser muito mais rápido, não existe forma de dizer o tempo disso, mas normalmente alguns meses, enquanto o extrajudicial tem um prazo médio de 6 anos para sua finalização. Mas há muitos casos que duram 20, 30 anos, inclusive gerações que falecem e a depende muito dos trâmites judiciais e se existe litígio entre as partes, o que dificulta bastante também esse processo”, compara Iasmin Mello.

Em ambos os casos, se houver um testamento, ele precisa ser registrado antes de iniciar o inventário. Além disso, é necessário pagar um imposto chamado ITCMD para homologar a partilha dos bens.

ITCMD na hora de planejar a sucessão

A reforma tributária recente no Brasil trouxe mudanças importantes na maneira como heranças e doações são taxadas. Agora, o imposto sobre essas transferências de patrimônio, chamado ITCMD, será aplicado de forma progressiva, substituindo a cobrança com alíquotas fixas nos estados. 

Assim, cada estado deverá estabelecer em sua legislação as faixas de base pelas quais as alíquotas do imposto irão aumentar, variando de 2% a 8%.

Isso significa que as famílias precisarão ajustar suas estratégias de planejamento financeiro diante das novas regras. Por exemplo, em São Paulo e Minas Gerais, onde o ITCMD era de 4%, as taxas serão ajustadas para atender à nova escala.  No Rio de Janeiro e Santa Catarina, as taxas já variam, o que se alinha mais com a ideia de uma tributação mais justa. 

Uma proposta em discussão no Senado sugere aumentar o limite máximo da taxa do ITCMD para 16%, o que poderia representar um aumento considerável nos impostos sobre heranças e doações.

Nos próximos meses, será feita a definição das novas regras para que, em conformidade com o princípio da anterioridade, a nova forma de cobrança comece a vigorar em 2025. Isso dá às famílias algum tempo para analisar suas opções de planejamento tributário e se preparar para lidar com o possível aumento de impostos. É importante que comecem a considerar alternativas para transferências de patrimônio, como imóveis e ações em empresas.

Como funciona o trâmite judicial?

No Brasil, a transmissão de bens costuma seguir, em regra, os princípios da sucessão legítima, prevista no Código Civil. A legislação brasileira prevê uma reserva legal para os herdeiros necessários: descendentes, ascendentes e cônjuges -e existem dúvidas sobre companheiros em união estável.

De acordo com Rita Bonelli, para quem tem herdeiros necessários, a reserva legal corresponde à metade do patrimônio, enquanto, quem dispõe apenas de herdeiros facultativos, como sobrinhos e irmãos, pode fazer um testamento e deixar a integralidade do seu patrimônio para quem bem entender.

Os procedimentos, em geral, são através de processos de inventários judicial e extrajudicial ou cartorário que operacionalizam a transmissão da herança aos herdeiros. “Para se ter uma ideia, em média, um inventário judicial dura de 3 a 10 anos, já no cartório esse tempo pode ser reduzido para três meses”, afirma a advogada.

Figuras públicas deixaram herança sem planejamento

O escoamento de heranças devido à falta de planejamento sucessório e gestão mal feita é comum no Brasil e existem, inclusive, inúmeros casos envolvendo figuras públicas que comprovam isso. 

Onze anos após a morte do humorista Chico Anysio, por exemplo, a fortuna deixada – cerca de R$ 20 milhões – virou pó, enquanto filhos e viúva seguem em disputa judicial. E não para por aí: além do espólio ter se perdido, segundo informações da revista Veja, há uma dívida de R$ 7 milhões.

Outro caso conhecido é o que envolve as filhas da cozinheira Palmirinha – que morreu em 2023. As duas filhas mais velhas da famosa questionam a informação sobre os bens deixados pela mãe, declarados ao juiz pela filha mais nova. 

No final de 2023, uma das filhas mais velhas de Palmirinha chegou a pedir que a mais nova fosse retirada do inventário, alegando que ela teria sonegado a herança.