Em março deste ano, as doações em criptomoedas para a Ucrânia chamaram atenção ao arrecadar o equivalente a US$ 63,8 milhões em criptoativos. O valor foi utilizado para financiar a compra de equipamentos militares, ajuda humanitária, kits médicos e comida. Neste mês, instituições brasileiras disponibilizaram carteiras digitais para doações em Bitcoin (BTC) aos afetados pelas chuvas em Recife.
E não são casos isolados. O número de organizações sem fins lucrativos e instituições de caridade que passaram a incentivar as doações em criptomoedas se multiplicou no mundo todo. A tendência vem sendo fomentada desde que o terceiro setor passou a enxergar vantagens em alguns diferenciais do mercado de criptoativos, como a descentralização das operações, a segurança da rede blockchain e as taxas menores sobre as transações.
Na The Giving Block, plataforma que oferece soluções de integração de cripto para mais de 1 mil instituições sem fins lucrativos, o volume total de transações cresceu 1.558% em 2021 na comparação com o ano anterior.
O montante transacionado pelas doações na plataforma ultrapassou US$ 69,6 mil, sendo que o volume médio da doação em criptomoedas, de US$ 10,49 mil, foi 82 vezes maior do que a média das doações em moeda tradicional, de US$ 128. Segundo relatório do site, os fundos de educação, animais, meio-ambiente, militar, tecnologia e ciência foram os principais destinos das doações.
Os dados dos valores arrecadados em criptomoedas para causas sociais mostram como aceitar doações em cripto pode trazer benefícios para ONGs e outras instituições sem fins lucrativos. Mas não foi somente a perspectiva de mais doações que levaram essas instituições a mergulharem no universo cripto.
Por que organizações estão incentivando doações em criptomoedas?
As próprias características das criptomoedas as tornam atrativas para estas ações. Isso porque, por ficarem registradas na rede blockchain, as transações garantem maior segurança dos dados, tanto do doador quanto do receptor. Uma pesquisa do Give.org realizada em 2021 mostrou que a maioria dos norte-americanos de todas as idades se preocupam com a segurança de seus dados no tocante à filantropia.
Lucas Passarini, trader do Mercado Bitcoin, diz que as informações armazenadas em blockchain trazem mais transparência aos dados. “As criptomoedas têm esse artifício, são um livro aberto. Como os dados ficam armazenados na rede, é fácil consultar saldos e transações passadas”, afirmou em entrevista ao BP Money.
Para João Moraes, cofundador da Ribon, uma plataforma descentralizada que incentiva a cultura de doações, a blockchain, por ser um registro público, “é extremamente transparente e rastreável”, o que torna a tecnologia confiável para quem trabalha com essa agenda.
Segundo o Global Trends in Giving Reports de 2020, 63% dos doadores no mundo preferiram doar dinheiro de forma online por débito ou crédito. No entanto, o pagamento via cartão pode reduzir o quanto a instituição recebe, uma vez que as taxas para cartões variam entre 2,2% e 7,5% globalmente.
As taxas cobradas por transações em criptomoedas variam de acordo com a plataforma utilizada e a urgência ou não da efetivação da operação, mas essas taxas costumam ser mais baixas do que outros métodos, como as transferências bancárias.
Assim, doações feitas diretamente para a organização ou instituição podem ajudar a proteger os dados do doador, além de garantir, na maioria das vezes, que uma maior porcentagem dos fundos sejam realmente destinados às causas.
Além disso, a Ribon vê o caráter aberto e descentralizado da blockchain como uma oportunidade de tornar o projeto “da comunidade para a comunidade”. A Ribon tem como projeto se transformar em uma DAO (Organização Autônoma Descentralizada) e Moraes ressalta que, ao abranger mais pessoas, o nível de interação e o impacto social é muito maior.
Passarini também enxerga mais facilidade e possibilidades de realizar doações em criptomoedas entre instituições e pessoas. “Este uso mostra que é muito fácil movimentar grandes ou pequenos valores pela blockchain sem passar pelas burocracias que existem na estrutura monetária global”, disse.
Ele ressalta que, para enviar dinheiro para uma organização de outro país, muitas vezes é preciso que a instituição tenha uma contraparte no Brasil ou que ela esteja no sistema monetário internacional. “Com a blockchain, as pessoas podem enviar valores para entidades em outros países sem precisar passar pelo meio tradicional de envio de câmbio”, contou.
Para algumas instituições, volatilidade e impacto ambiental pesam contra os criptoativos
Apesar do baixo custo, eficiência e transparência, um dos obstáculos para as transações com criptomoedas é a volatilidade desses ativos. O Bitcoin (BTC), por exemplo, principal criptomoeda do mercado, chegou a atingir o valor histórico de US$ 68,6 mil em novembro de 2021. No entanto, desde o começo do ano, a cotação tem sofrido consecutivas quedas, caindo para baixo dos US$ 30 mil.
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Uma das soluções para essa volatilidade é o investimento em stablecoins, criptomoedas cujo valor é estável por estar atrelado a algum ativo real, como o dólar ou o ouro. Dessa forma, a volatilidade se torna bem menor.
Os ativos utilizados na Ribon, por exemplo, são atrelados ao USDC, a stablecoin da rede Ethereum. Moraes conta que essa escolha foi feita para garantir maior proteção das flutuações de preço desse mercado.
Mas mesmo as stablecoins não são 100% seguras, como foi observado na crise do sistema Terra, após a stablecoin TerraUSD perder o valor de paridade com o dólar.
Outro ponto levantado é a mineração de criptomoedas e seus impactos negativos para o meio ambiente. Este foi o motivo para a Fundação Wikimedia, da qual faz parte a Wikipedia, optar por deixar de aceitar doações em criptomoedas em abril.
A mineração de criptomoedas é uma atividade que consome muita energia e, portanto, tem grande impacto ambiental. Francisco Venancio, vice-presidente da Wikimedia Brasil, diz que a organização seguiu o exemplo da Mozilla Firefox, que também deixou de aceitar doações em criptomoedas citando o impacto ambiental como principal fator para a decisão.
Venancio explica que outro aspecto que levou a organização a deixar de aceitar estas doações foi o número reduzido de transações em criptomoedas registradas desde que a Wikimedia passou a aceitar esses ativos, em 2014. “Nunca foi algo representativo, sempre foi uma proporção bem pequena”, contou.
“A comunidade fez uma consulta pública para decidir se deveríamos parar de aceitar [doações em criptomoedas], e os resultados foram preponderantes”, afirmou Venancio. Para a tomada de decisão, 400 editores da Wikipédia votaram em uma assembleia, na qual 71% votaram por abandonar as doações em cripto.
Grandes organizações globais seguem aceitando doações em criptomoedas
Mesmo assim, grandes instituições sem fins lucrativos atualmente aceitam doações em criptomoedas. O Greenpeace aceita doações na forma de Bitcoin (BTC), enquanto a Khan Academy aceita doações em Bitcoin, Bitcoin Cash, Litecoin e Ethereum (ETH).
A Cruz Vermelha, organização que tem como missão proteger a vida e a dignidade das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência, aceita os mais variados criptoativos. O Freedom of the Press Foundation, que apoia o direito de livre expressão da imprensa, também aceita doações em criptomoedas.
No Brasil, as doações feitas na Ribon já impactaram cerca de 220 mil pessoas, além de movimentar quase R$ 1 milhão. Joyce Vieira, analista de projetos sociais da plataforma, ressalta três organizações que são beneficiadas hoje pelas doações feitas na plataforma.
Por meio das doações em criptomoedas na Ribon, pode-se garantir um dia de alimentação gratuita aos animais sob os cuidados da Amor em Patas, dar acesso de populações vulneráveis a teleconsultas médicas gratuitas pela organização Horas da Vida ou financiar a redistribuição de alimentos que seriam desperdiçados no comércio aos mais necessitados por meio da Infinity.