Bitcoin vs ouro: crise provoca corrida por (supostos) ativos de proteção

Criptomoedas enfrentam prova de fogo neste ano como hedge de inflação; teoria de que investimento funciona como alternativa à commodity perde força após sucessivas quedas

O mercado entra numa espécie de corrida pelo ouro em tempos de crise. Hoje, com a tempestade perfeita formada sobre o horizonte de 2022, ETFs (fundos de índices) e autoridades monetárias devem acelerar as compras pela commodity. Para o investidor pessoa física, no entanto, voltam à tona as comparações com o Bitcoin, defendido como alternativa para proteção do capital.

O paralelo entre os dois ativos foi traçado desde o nascimento das criptomoedas e rendeu ao Bitcoin o apelido de “ouro digital”. Uma teoria que será posta à prova neste ano, mas que tem tudo para não vingar, segundo especialistas ouvidos pelo BP Money. 

A comparação perde fundamento, principalmente, por criar correlações entre dois ativos completamente diferentes, que se comportam, operam e têm públicos muito distintos. “Estamos diante de uma guerra de narrativas, mas não vejo sentido nessa comparação”, afirmou Emanuel Takahashi, CEO da Bitcoin Move e especialista de investimentos, que atua há mais de cinco anos como analista no mercado de criptomoedas.

Apesar de atuar com os criptoativos, Takahashi é um dos primeiros a reconhecer que o Bitcoin não funciona como ativo de reserva de valor. Para ele, a elevada oscilação no valor da criptomoeda – assim como qualquer outro ativo cripto -, bem acima do mercado tradicional, já prova como ela não funciona para proteção de capital.

Já a oferta e demanda por ouro são tão estáveis e sólidas quanto o próprio metal, por isso a commodity se consolidou como um hedge de investimentos no mercado. Mesmo funcionando quase como escudo contra o cenário volátil, há perspectiva de alguma pressão – ainda que relativamente pequena – sobre o ativo no futuro próximo.

Os bancos centrais, responsáveis por cerca de 20% da compra de ouro no mercado global, devem apresentar uma demanda mais assídua pelo ouro neste ano.

Desde o início do conflito na Ucrânia, com a escalada das tensões geopolíticas, “faz sentido para um banco central que não seja aliado dos Estados Unidos ou da Europa diversificar as reservas para fugir do dólar e do euro”, explicou Ricardo Kazan, sócio e gestor da Legacy Capital, em entrevista ao canal do “Stock Pickers” no YouTube. É o caso, por exemplo, da China. 

O especialista associa o cenário à pressão da Rússia, um dos maiores exportadores de commodities no mundo, para pagamento em rublo (moeda russa), desde que o Kremlin passou a sofrer sanções econômicas de países do Ocidente. 

Além disso, bancos centrais de países emergentes reduziram as compras de ouro durante a pandemia para aumentar as reservas em moeda e dar mais liquidez ao mercado financeiro e ao sistema. Com a retomada do ciclo de alta das commodities, essas entidades devem voltar a diversificar suas reservas. A expectativa é que os patamares de preços subam no horizonte de seis meses a um ano.

Por ora, a commodity acumula valorização de 8% em dólar no ano. Contra a montanha-russa nos preços de petróleo e gás, por exemplo, cuja amplitude de oscilação está em torno de 25% a cada dez dias, o investimento em ouro é mais atraente. Para o metal, a volatilidade de preço chega a um terço em relação à oscilação do petróleo.

Ainda que o mercado esteja mais instável que o seu normal, a previsibilidade do comportamento do preço do ouro é o que o torna um recurso de reserva de valor e ativo de proteção anti-inflacionário.

Isso não significa, claro, que passe ileso às ressacas nos mercados. As reações do Fed (Federal Reserve, o banco central norte-americano) para conter o cenário de inflação nos EUA afetaram os preços dos contratos para junho, que fecharam em queda de 1,28%, a US$ 1.858,60 por onça-troy na bolsa de Nova York (NYSE). 

Mesmo dentro de uma margem de variação de preços relativamente pequena, sob ânimos aflorados na crise, os questionamentos sobre ativos de proteção alternativos começam a se fortalecer. Afinal, o ouro é mesmo o único – ou o melhor – caminho? Os primeiros a se contrapor a essa ideia foram os investidores de criptomoedas, quando apontaram para o potencial do Bitcoin em ser um hedge da inflação.

Perspectivas para preço do ouro e investimentos da Tesla em Bitcoins inflam comparações 

Antes, é preciso entender que por trás dos questionamentos sobre o ouro estão análises, como a do BTG Pactual em abril deste ano, que enxergam vetores pressionando para baixo o valor da commodity em um futuro próximo. Para o banco de investimentos, com a elevação das taxas de juros e tendência do crescimento global e subida do dólar, analistas recomendam reduzir a exposição direta ao ouro. 

Para a Legacy Capital, o risco de o ouro cair, é num cenário de arroxeamento das condições financeiras e elevação do juro real em escala bem superior à prevista pelo Fed, de 0,5%. A gestora entende que a queda virá no momento que o banco central dos EUA começar a subir o juro em 0,75% a 1% por reunião e reduzir a flexibilização quantitativa, instrumento das autoridades monetárias para liberação de grandes volumes de dinheiro novo. Um movimento que pode levar mais tempo para acontecer.  

Só que, mesmo com um horizonte mais volátil e incerto, a visão do ouro como reserva de valor não foi afetada entre os especialistas.

Kazan defendeu que, para o investidor pessoa física preocupado com a proteção a longo prazo, ter entre 2% e 5% de exposição ao ouro na carteira é interessante para atravessar momentos de estresse no mercado. “O ativo de proteção deverá ser algo que vai bem quando os outros ativos vão mal”, lembrou Marilia Fontes, sócia-fundadora da Nord Research, em entrevista ao BP Money. Ou seja, quando os principais índices acionários estão em declínio, como a Nasdaq, que acumula queda de 25% no ano, o ouro valoriza. 

O entusiasmo com as criptomoedas, particularmente o Bitcoin, como um ativo anti-inflação, ganhou fôlego recentemente depois que a Tesla anunciou uma compra histórica de US$ 1,5 bilhão no ativo, em fevereiro de 2021. A empresa de Elon Musk é o segundo maior investidor em Bitcoin depois da MicroStrategy (empresa de business intelligence), que tem um estoque de US$ 4 bilhões em Bitcoins. 

Segundo informado pelas companhias, os investimentos representavam uma estratégia financeira de alocar parte das reservas na criptomoeda como uma forma de se proteger dos impactos inflacionários. 

Não tardou para que outros entrassem na onda de investimentos em criptomoedas com a premissa de proteção do capital. A defesa do paralelo com o ouro, tendo o Bitcoin ou outra cripto como hedge de carteira, recorre à escassez dos ativos. 

Ideia do Bitcoin como alternativa ao ouro vem de visões divergentes

Quando a criptomoeda apareceu pela primeira vez para o público, em 2008, seu criador, Satoshi Nakamoto, já previa o fim da mineração (o processo de emissão de Bitcoins) quando batesse a marca de 21 milhões de unidades. É por isso que o protocolo prevê halving, que é a redução no volume de emissões, a cada quatro anos – o último aconteceu em 2020. 

Em participação no programa “Debate CNN”, José Artur Ribeiro, CEO da Coinext, argumentou que o Bitcoin tem características que atendem demandas da nova economia, por ser fracionável até a oitava casa decimal, além de mais seguro e transparente, considerando que todas as transações ficam registradas na rede blockchain. 

Na última segunda-feira (9), a criptomoeda mais famosa do mercado alcançou o menor valor em quase um ano. De novembro de 2021, quando bateu a marca histórica de US$ 69 mil, para os US$ 29 mil que a criptomoeda chegou a ser negociada nesta quarta-feira (11), o Bitcoin acumula queda de 58%. No último mês, o tombo em valor de mercado foi de mais de US$ 800 bilhões. 

Ribeiro considera a volatilidade como um fenômeno normal do mercado por se tratar de um sistema com alta liquidez. “Grande parte dos investidores tem acesso fácil ao Bitcoin, o que causa oscilações de mercado maiores”, disse. Mas Marília, da Nord Research, descarta a criptomoeda como recurso de proteção de capital, justamente pelo seu comportamento como ativo de risco, “performando bem quando a bolsa vai bem”. Ao adotar uma relação direta com o mercado, a alocação em criptoativos segue no sentido contrário à lógica do investimento para reserva de valores.

Criptomoedas ganham força como hedge inflacionário?

O fato de o Bitcoin e outros criptoativos não serem emitidos ou regulados por bancos centrais os tornaria, na visão de alguns investidores, um ativo “imune à inflação”. Essa visão está na origem das criptomoedas, criadas em 2008 como uma resposta à crise da bolha imobiliária nos EUA. Na época, o programa de estímulos fiscais do governo norte-americano para salvar a economia gerou uma corrida por investimentos a salvo das intervenções de políticas fiscais e que poderiam oferecer uma rentabilidade acima da inflação.

Hoje, além de um cenário macroeconômico que empurra os índices de inflação para cima dos patamares de 14 anos atrás, outro fator que leva muitos investidores a concluir que a criptomoeda poderia servir para se proteger da crise é a comparação com outros ativos. A questão aí é que o movimento não é realmente uma reserva de valor. 

A visão da alocação em criptoativos na crise estaria associada a uma perspectiva de longo prazo, mas, no dia a dia, tende a ser muito frustrante, dada a alta volatilidade desse mercado. É por isso que Takahashi, CEO da Bitcoin Move, crava: “criptomoeda não protege capital”. 

Com variações que podem chegar a 50% em um dia normal, a inconstância dos preços e das transações é um comportamento característico das operações de criptomoedas. “Para pessoas que não estão acostumadas com essa flutuação, que é bem superior ao mercado tradicional de ações, pode ser um susto”, afirmou o analista.  

Por outro lado, Takahashi acredita que a estratégia funciona como hedge contra a inflação. “No cenário atual, o papel moeda acaba perdendo valor, enquanto as criptomoedas já provaram um retorno melhor no horizonte mais amplo”, ponderou. 

Na frente especulativa, no entanto, e até com um olhar para retorno do ativo no curto e médio prazo, o investimento pode trazer decepções profundas. É o caso da criptomoeda Luna, nativa da rede de blockchain Terra. Mesmo atrelada a uma stablecoin (moedas estáveis, isto é, criptomoedas pareadas em ativos estáveis), em questão de sete dias a Luna perdeu 99,42% do seu valor, saindo de US$ 119 para US$ 0,69 na manhã desta quarta-feira (11), como é possível ver na imagem abaixo. 

 

Em janeiro deste ano, o BofA (Bank of America) divulgou relatório ao mercado em que questionava o status das criptomoedas como hedge inflacionário. A ironia é que os analistas responsáveis pelo documento ponderam que  sua análise – publicada antes da eclosão do conflito no leste europeu – não se aplicaria nos ambientes inflacionários. À época, as economias desenvolvidas estariam blindadas. Mas em cenários bem voláteis, reconhcem, os investimentos em Bitcoin como hedge de inflação poderiam funcionar. 

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