A cobertura do mercado financeiro é, por vezes, como o trabalho de mensageiro do apocalipse. Este é um desses momentos. Com o desequilíbrio da cadeia global por conta da pandemia e da guerra na Ucrânia, a crise atingiu magnitude histórica, e o pessimismo contamina o cenário em todos os mercados.
Diferentemente do Armagedom, no entanto, esse fenômeno é cíclico no sistema capitalista. Tanto que há pelo menos um ano especialistas já alertavam para a resiliência do ambiente de inflação, que pressiona hoje o ambiente econômico. Não há um fim do mundo adiante na realidade do capital, mas grandes batalhas e (talvez) perdas pelo caminho, apontam especialistas.
As entidades monetárias estrangeiras custaram a partir para as medidas de sacrifício, porque significaria frear o ritmo do mercado em ano de retomada das atividades. Essa postura no exterior trouxe um trabalho ingrato para o Banco Central do Brasil, que vinha tentando controlar o ambiente interno com altas nos juros desde maio de 2021. Esforço que se mostrou inútil até agora.
Com a escalada do cenário externo, que pressionou os preços do mercado nacional, especialmente no setor de commodities, a atividade econômica resiste em arrefecer. Somado ao crescente risco fiscal e à inflação doméstica – em parte cativa, em parte fruto dos últimos dois anos -, a entidade precisou endurecer o tom. O resultado: uma Selic que saiu de 2% ao ano no segundo semestre de 2020 para os atuais 13,25% ao ano.
Para piorar, analistas acreditam que, com o recente endurecimento do tom do Fed, que sinalizou a possibilidade de mais um aumento de 0,75 p.p. sobre os juros em julho, dificilmente a taxa básica no Brasil conseguirá parar por aí.
“Décadas de taxa básica de juros baixa e taxa de juro real negativa desatrelaram o lastro ouro do dólar. Além disso, a emissão de papel provocou muita liquidez a custo nulo, aí vimos os negócios aproveitando o ambiente para se alavancar”, explicou Max Mustrangi, sócio-fundador da gestora de turnaround (recuperação de empresas) e reestruturação Excellance.
Boa parte dos recursos se transformou em expansão nas companhias, mas não necessariamente em rentabilidade. Então o pânico das empresas com a mudança de postura das autoridades monetárias globais hoje, ante o endurecimento da alta dos juros nos Estados Unidos e na Europa, está especialmente associado ao seu impacto sobre o bolo da dívida.
Por isso o celular de Mustrangi não para de tocar. “O que tem de construtora me ligando para tentar vislumbrar saídas não é brincadeira”, contou ao BP Money. Assim como as companhias aéreas, o setor de construção concentra índices de endividamento bem mais altos que os do resto do mercado. Além disso, esse consumo depende de uma oferta de crédito relevante, que está ameaçada com a crise e os juros altos.
Em relatório a clientes, o BTG Pactual chamou a atenção para a alta alavancagem (isto é, o uso de capital de terceiros para potencializar ganhos na operação) de Via e Magazine Luiza. Mas os maiores índices de alavancagem estavam concentrados nos setores imobiliário e aéreo, como lembra Mustrangi.
Azul aparece em primeiro lugar no ranking consolidado pelo BTG Pactual, com índice em 11,2 vezes o Ebitda, seguida por HBR Realty Empreendimentos Imobiliários, com alavancagem de 10,5 vezes, e Gol, com 9,7 vezes no ano de 2021.
As estimativas do banco de investimentos para o ano mudam um pouco a configuração do ranking de alavancagem das empresas listadas em bolsa, conforme as aéreas começam a recuperar margens.
Nas projeções traçadas em maio para o ano de 2022, a HBR Realty assume a primeira posição, com alavancagem de 13,9 vezes, seguida por São Carlos, com 9,1 vezes, e Tenda, com índice em 7,7 vezes, todas do setor de empreendimentos imobiliários.
Latam, por sua vez, segue o plano de recuperação judicial pelo Chapter 11, dispositivo legal da lei de falência no mercado norte-americano, e anunciou na última segunda-feira (13) ter conseguido financiamento para o plano de reestruturação do negócio. De acordo com a companhia aérea, o acordo contempla US$ 2,25 bilhões em emissão de dívida e US$ 500 milhões em uma nova linha de crédito rotativo.
Mas a transação, assim como o plano de reestruturação, ainda dependem de aprovação do tribunal que conduz seu processo de recuperação judicial em Nova York. “É uma dívida que só deve se pagar em muitos anos. Não é recuperação, é alavancagem financeira, que até pode ajudar a companhia hoje, mas a mantém sob risco para o médio e longo prazo”, avaliou o sócio-fundador da gestora Excellance.
Perspectiva no mercado é de descida geral de patamar
O noticiário está recheado de empresas com altos índices de endividamento que passaram a considerar ou já fazem a revisão do negócio. Só na última semana, ganharam manchetes, por diferentes razões ligadas às suas delicadas situações: Máquina de Vendas, controladora da Ricardo Eletro, Grupo Atma, Oi, e a Revlon, nos EUA. Todas que já estão, entraram ou devem entrar com pedido de recuperação judicial.
Além delas, a Forever 21 está encerrando de vez a operação no Brasil. Depois de três anos de recuperação judicial nos EUA e com uma elevada carga de processos sobre irregularidades trabalhistas, a perspectiva para a companhia não é nada positiva.
Estamos diante de uma quebradeira no mercado, então? Por aí, mas é, antes de tudo, uma descida de patamar. As empresas que estavam bem mas com a operação alavancada devem ficar mal; só que aqueles que estavam mal (em recuperação judicial ou com dificuldade de negociar com credores) devem ficar numa situação ruim mesmo.
Antes, lembra Mustrangi, é preciso considerar que menos de 18% das empresas que aplicam para entrar em recuperação judicial no País têm o pedido aceito, “quer dizer, 82% vão para a falência direto”, complementou.
Então, há mais possibilidade de falências, mas este não é o único efeito dessa crise sobre o cenário. “A questão agora é que o perfil de recuperação judicial deve ser outro. Estou vendo empresas médias e grandes começando a indicar que precisam recorrer à recuperação judicial”, explicou o especialista da Excellance.
Um fator que contribui de forma significativa para esse cenário seria a maior dificuldade de se conseguir financiamento no mercado hoje, além de muitas empresas já terem comprometido suas garantias com dívidas anteriores. Uma tranquilidade para os bancos, que mostraram ter aprendido suas lições com a crise de 2008, mas uma preocupação para as empresas que estão muito endividadas e com as garantias tomadas.
Para Vincent Baron, diretor da Naxentia, consultoria especializada em gestão empresarial, a questão no Brasil é que o mercado atravessou consecutivas crises recentemente, então muitas das empresas que quebrariam agora já se foram ou estão em recuperação judicial.
A modificação da lei de recuperação judicial no ano passado deu mais poder aos credores, que passaram a poder recusar o plano para apresentar o deles ou oferecer outras saídas, como entrar no controle acionário. “Isso já está se refletindo hoje nas negociações, por isso o caso da Ricardo Eletro não é isolado. A tendência é de se consolidar mais poder nas mãos dos credores, com a possibilidade de os sócios serem tirados da gestão ou perderem espaço no quadro societário, e de os credores assumirem os negócios, desde que o ativo seja minimamente bom, é claro”, concluiu o diretor da Naxentia.
A exemplo, Baron cita a Constellation Oil Services (antiga Queiroz Galvão Óleo e Gás), que encerrou o processo de recuperação sob a entrada dos detentores de títulos na empresa. Agora, os credores passam a controlar a empresa, com uma fatia de 47% das ações, ante a redução de participação do Fundo Sunstar e Capital, antigo controlador, para 27%.
Mustrangi enxerga o mercado se concentrando mais ainda nas mãos das grandes companhias, mas hoje por outros motivos. “Antes, a tendência de mercado era de concentração porque havia muita disputa e liquidez, então a proposta de aquisição tinha intenção de consolidar uma fatia maior de mercado. Agora, há muitos M&As disfarçando um ‘abraço dos afogados’, a união para evitar a quebra das empresas”, defendeu o sócio-fundador da Excellance.
O horizonte deve seguir crítico ao menos até o primeiro semestre do ano que vem – ou assim que a inflação começar a ceder, para que os juros possam baixar. Daqui para frente, explicam os especialistas, as empresas precisarão reduzir gastos e revisar seu portfólio para restabelecer o caixa. Não só entre os mais endividados, aliás, mas todos os negócios dependentes de financiamento externo.
“Veremos mais empresas deixando o mercado nacional, demissões em massa e mudança de controle acionário. Movimentos de negócios estranhos também. Redução e empobrecimento de portfólio, queda de qualidade dos produtos, além de fechamento de pontos de vendas”, anunciou Mustrangi.
Crise alavancou endividamento do consumidor, deixando pouco espaço para a demanda
Sucessivas crises nos trouxeram até aqui, por isso a sociedade está muito endividada nas suas três esferas: governo, mercado de empresas e famílias. De 2010 a 2019, mesmo antes da crise da covid-19, a alavancagem global do setor privado não financeiro, que inclui famílias e empresas de outros setores, subiu de 138% para 152%, com a alavancagem das empresas atingindo um máximo histórico de 91% do PIB. As condições financeiras brandas na esteira da crise financeira mundial de 2008 foram um responsáveis pelo aumento da alavancagem.
Em todas as economias, o endividamento aumentou ainda mais em consequência das políticas de apoio adotadas em resposta ao choque da pandemia. Segundo o Serasa, 65,7 milhões de brasileiros estão endividados hoje, o maior índice desde abril de 2020.
O cenário no País pressiona o mercado por indicar pouco espaço na demanda, que deve sofrer com a queda da renda e o crescente endividamento. Assim, repassar a inflação aos preços também deve ficar mais difícil.
Não há passagem nos livros religiosos que descreva o pós-apocalipse, simplesmente porque ele representa o fim definitivo de um mundo. Nos livros do capital, o cenário não é catastrófico e há espaço para redenção.
O próximo ciclo será um retorno ao fundamento, com a correção dos valuations e revisão operacional nas empresas. O período de capital farto e gastos exorbitantes em escalabilidade e exposição de marca vai chegando a um novo fim.
“É parte do ciclo. Se as taxas de juros dos bancos centrais estivessem no patamar em que deveriam estar há mais tempo, muitos setores e negócios sequer existiriam, porque não teriam financiamento para seus negócios”, declarou Mustrangi. Para companhias com demanda mais estável, que conseguem preservar suas margens, a situação é menos alarmante.
Embora não tão dramático quanto um Armagedom, o recado dos especialistas sobre a crise está dado: a altura do mercado no mundo todo deve baixar.