A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre como vai funcionar o uso de créditos relativos à cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na transferência, entre estados, de mercadorias de uma mesma empresa pode ter um impacto bilionário em diversos setores, em especial o setor de varejo. O caso está em votação no STF desde sexta passada (10) e terminaria nesta sexta-feira (17), mas o ministro Alexandre de Moraes pediu vista e a votação terá que acontecer novamente.
“O varejo pode ser certamente o setor mais impactado, tendo em vista a intensa movimentação de mercadoria entre os diferentes Centros de Distribuição (CD), muitas vezes localizados em diversos estados para facilitar e agilizar a chegada da mercadoria ao destinatário final”, explicou o advogado contencioso Tributário do escritório Briganti Advogados, Júlio César Machado.
Segundo os especialistas ouvidos pelo BP Money, a discussão gira em torno do reaproveitamento de créditos do ICMS gerado durante operações de uma companhia em um estado, para o pagamento do ICMS de outro estado, onde há filiais dessa mesma companhia.
“O ICMS é um imposto não cumulativo, o que significa dizer que o ICMS pago na saída de uma mercadoria de um estabelecimento (remetente) pode ser aproveitado como crédito na entrada no estabelecimento destinatário, para abater do valor total do ICMS devido na saída posterior das mercadorias por este estabelecimento (destinatário)”, pontuou a sócia do escritório TozziniFreire Advogados, Lisandra Pacheco, especialista em tributos indiretos.
Para as advogadas do escritório AlmaLaw, Luciana Aguiar e Rachel Lagos, as empresas sempre consideraram que, junto às transferências das mercadorias, elas poderiam seguir transferindo o ônus do ICMS via o sistema de débito e crédito.
“Elas se organizaram considerando que o tributo não seria um problema. Uma eventual quebra do paradigma provoca também uma quebra na lógica econômica das empresas”, ressaltaram.
De acordo com o advogado tributarista Eduardo Muniz Cavalcanti, sócio da Bento Muniz Advocacia, entrevistado pelo jornal Época Negócios, caso a decisão não seja favorável ao uso desses créditos, é estimado uma perda potencial de R$ 5,6 bilhões de reais por ano no setor de varejo.
“A partir do momento em que você não consegue essas transferências dos créditos, você não consegue dar vazão. Então, imagino que eles estejam atrelando essa perda [de bilhões] aos créditos que vão ficar parados. Mas não podemos afirmar categoricamente. Enquanto o STF não cravar como vai funcionar essa questão da transferência, as empresas acabam ficando em uma situação de insegurança jurídica”, explicou o advogado tributarista no escritório Zilveti Advogados, Igor Tressoldi.
Discussão sobre transferência de crédito de ICMS
Para contextualizar, os especialistas relembram que a discussão sobre a transferência dos créditos teve início em um primeiro debate, em abril de 2021, através do julgamento da Ação declaratória de constitucionalidade (ADC) 49 pelo STF. Na ocasião, discutia-se sobre a incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Como resultado, o STF decidiu por unanimidade pelo não pagamento desse tributo.
A justificativa dos ministros para essa decisão de 2021, de acordo com Tressoldi, foi de que, nessa situação, não há uma venda propriamente de mercadoria e, sim, apenas uma operação logística. “Digamos que eu tenho uma empresa aqui em SP e uma filial em MG. Se eu fizer um deslocamento de uma mercadoria para minha filial, não se trata de uma troca de titularidade e, portanto, não havia o fato gerador do ICMS. Essa era a discussão”, explicou.
A partir desse primeiro debate, entraram outras duas questões: a primeira é sobre a regulamentação de transferência de créditos. O sócio do escritório Maia & Anjos Advogados, Márcio Miranda Maia, explica que, a partir do entendimento de que não havia a incidência do imposto no caso de deslocamento de mercadoria entre a mesma empresa localizada em diferentes estados, surgiu a questão do reaproveitamento do crédito.
“Ocorre que, partindo dessa premissa, na visão do fisco, se não há pagamento do ICMS na transferência, não haveria que se falar em utilização de qualquer crédito pago nas etapas anteriores para quitação do ICMS das etapas posteriores”, afirmou Maia.
Isso, segundo os especialistas, seria maléfico para as empresas. Conforme complementa Tressoldi, caso não haja essa transferência, isso pode gerar um acúmulo de crédito, além de fazer a primeira decisão da não incidência do ICMS sobre o deslocamento ficar “elas por elas”, já que as empresas não pagariam o imposto durante a transferência de mercadorias entre estados, mas também não poderiam fazer esse reaproveitamento do ICMS pago em um estado para abater o imposto do outro local.
“Se for acolhido esse entendimento de que as empresas não podem transferir para o outro estado, na prática os estabelecimentos vão começar a acumular crédito de ICMS, e o problema que acontece é que é difícil dar vazão a esse crédito. No final da história, eu vou ‘morrer’ com esse crédito, porque não vou conseguir aproveitá-lo”, completou Tressoldi.
O outro ponto em julgamento, de acordo com os especialistas, é sobre quando passa a valer a primeira decisão de 2021. Isso porque, apesar de ter tido consenso lá atrás pela não necessidade de pagamento do ICMS durante os deslocamentos de mercadorias entre matrizes e filiais, não havia tido quórum suficiente (oito votos) para a oficialização de quando as empresas poderiam começar a não pagar o tributo. Sendo assim, o STF também discute agora qual será “o recorte temporal” dessa primeira decisão, chamada de “modulação de efeitos”.
Setor de varejo pode ser um dos mais impactados
Lisandra Pacheco comenta que os setores mais afetados são aqueles que possuem muitos estabelecimentos localizados em diferentes estados e que, por conta da sua estrutura logística, realizam muitas operações de transferência.
“Nesse sentido, o varejo também poderá ser altamente impactado, uma vez que a maioria dos grandes contribuintes deste ramo se utilizam de CDs regionais responsáveis pela aquisição de mercadorias e transferência para os estabelecimentos varejistas próximos, aumentando assim a eficiência logística de sua operação”, disse.
Na visão de Maia, caso ocorra uma decisão negativa no sentido do crédito do ICMS não poder acompanhar a mercadoria, isso estaria violando o princípio da não cumulatividade, “além de poder causar um aumento significativo no custo dos produtos dos varejistas que certamente serão repassados aos consumidores finais”.
“Tal situação causa um impacto gigantesco aos contribuintes, principalmente para as empresas varejistas que transferem mercadorias entre estabelecimentos localizados em Estados distintos, pois além de ficarem com um crédito acumulado de ICMS no Estado de origem da mercadoria, devem arcar com o custo integral do ICMS devido nas etapas posteriores no estado de destino”, afirmou.
Julgamento do STF
Desde a última sexta (10), o STF julga como se dará a regulamentação do uso dos créditos. Até esta quinta-feira (16), oito dos 11 ministros haviam votado. Enquanto os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso acompanharam o relator, o ministro Dias Toffoli divergiu e foi seguido por Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Luiz Fux. Faltavam, ainda, votar os ministros Gilmar Mendes, André Mendonça e Rosa Weber. Contudo, Alexandre de Moraes mudou seu voto e pediu vista, o que fará o julgamento recomeçar.
Sobre o primeiro ponto que está em jogo, Tressoldi explica que há duas correntes no STF. De um lado, Fachin, Barroso, Cármen Lúcia e Levandoski querem que a modulação dos efeitos seja a partir de 2023, ou seja, que a não incidência do ICMS passe a valer a partir deste ano. Em relação ao segundo ponto, de como seria a transferência de créditos, os quatro ministros entendem que seria de caráter dos estados regulamentarem. “Caso os estados não regulamentem, os contribuintes terão direito automaticamente à transferências dos créditos”, disse.
Já do outro lado, segundo o advogado, há o voto do Toffoli (seguido por mais três ministros, incluindo Alexandre de Moraes antes do pedido de vista) que entendeu que essa questão de regulamentação deve ser feita por meio de uma lei complementar. Sendo assim, ele estabeleceu o prazo de 18 meses para que o Congresso edite uma norma a respeito, contados da data da publicação da ata de julgamento dos embargos de declaração.
Na visão das advogadas Luciana e Rachel, um ponto a ser destacado é que um crédito concedido por um estado, não pode ser usado automaticamente para compensar o ICMS devido em outro estado, sem que haja uma regra clara que garanta que o outro estado aceitará a compensação. Por conta disso, em suas visões, o voto do ministro Toffoli para a lei complementar poderia suavizar esse processo. “Se isso não prevalecer, os contribuintes terão que tomar decisões que poderão ou não ser aceitas pelos estados”, disseram.