Wirecard: o escândalo da maior fintech da Alemanha

Como a companhia que surpreendeu o mundo financeiro com seu sucesso vertiginoso virou um dos maiores casos de fraudes da Alemanha?

Você pensaria duas vezes antes de adquirir ações de uma fintech que possui um valor de mercado superior ao do banco central do país de origem?

A pergunta é retórica para um bom investidor. Esse vislumbre de potencial no mercado, somado a uma estruturada expansão global, foi o que levou a Wirecard ao posto de maior fintech da Alemanha.

No entanto, a fama da empresa apoiava-se em um esquema bilionário de corrupção. O escândalo da gigante alemã percorreu o mundo em 2020 e, no mês de setembro, ganhou documentário na Netflix.

Mas o que realmente aconteceu para tornar a companhia que surpreendeu o mundo financeiro com seu sucesso vertiginoso em um dos maiores casos de fraudes da Alemanha?

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O começo de tudo

A Wirecard foi fundada em 1999, atuando como “PSP” (Provedor de Serviços de Pagamento, na sigla em português). No início, seu faturamento vinha da ajuda que oferecia a sites pornográficos e de jogos de azar para recolher pagamentos com cartões de crédito.

Em 2005, abriu capital na Bolsa de Valores de Frankfurt e começou a voar: de 2009 até 2018 alcançou uma valorização de 3115%. No mesmo período, as empresas cotadas no índice DAX 30 registraram uma valorização de “apenas” 119%, enquanto o índice tecnológico Tecdax “somente” 382%.

Todo esse sucesso parecia estar ligado a Markus Braun, CEO e principal acionista da Wirecard por duas décadas. O austríaco moldou a imagem de um empresário crível e incisivo – estratégia que foi bem recebida pelos investidores da fintech.

Braun chegou a ser chamado de “Steve Jobs dos Alpes”, comparação que refletia o desejo dos alemães em modernizar seu quadro corporativo e ostentar uma empresa líder no segmento digital, no modelo do Vale do Silício.

Ao longo desses 9 anos, o grupo conquistou mais de 300 mil clientes em 20 países, contando com 5.800 funcionários, 2,2 bilhões de euros de receita e 347 milhões de euros de lucro líquido. Chegou a assinar acordos com empresas como Alipay e WeChat, além da Apple e Google, para operar como intermediário das compras ocorridas em seus sites.

Nesse período começam as primeiras compras de outras empresas na Ásia, graças a uma base operacional aberta em Cingapura. Porém, sempre com um nível de transparência muito baixo.

Pouco se questionava na época sobre seu modelo de negócios que, em resumo, parecia simples: garantir pagamentos online coletando um prêmio sobre os riscos. Apesar disso, jornalistas já atentos na movimentação da companhia notaram crimes corporativos muito mais complicados do que sua forma de negócio…

A descoberta das fraudes

Em 2015 o jornal britânico Financial Times começou a publicar uma série de matérias com o título “House of Wirecard”, onde eram denunciadas irregularidades contábeis da empresa. O veículo chegou a calcular um possível rombo de 250 milhões de euros nas contas da companhia. Mesmo assim, ninguém fez nada. Por que?

A questão era que, na Alemanha, essas acusações foram interpretadas como investidas dos concorrentes britânicos, que atacavam uma fintech alemã, considerada sua maior aposta do mercado teutônico.

No mesmo ano, a processadora de pagamentos comprou o Great Indian Retail Group, companhia indiana de comércio e pagamento eletrônicos, por 350 milhões de euros. A maior aquisição já feita pela fintech alemã.

Ou ao menos, era o que parecia.

Os repórteres do Financial Times, que analisaram a venda, ouviram as fontes locais envolvidas na operação e chegaram à conclusão de que o valor real da Gi Retail não superava os 100 milhões de euros. O restante teria sido desviado ou utilizado para aumentar artificialmente a receita da controladora.

Você deve estar se perguntando como a empresa continuou a avançar nos anos seguintes, frente a tantas acusações graves.

Acredite ou não, o fato é que Braun alimentou durante todo esse tempo a narrativa de que os textos do Financial Times corroboravam com um plano dos investidores que operam em posição vendida – alugam ações e depois vendem, esperando que o preço caia para recomprá-las mais baratas. Ele afirmava que, em busca de lucro, queriam destruir a empresa. E sim, as pessoas compravam esse papo afim de ganharem os altos retornos prometidos com as posições da fintech.

E tem mais: como não fechar os olhos para as notícias quando se acreditava que o sistema de controle do mercado de capitais alemão funcionasse e garantisse a regularidade das contas das empresas cotadas?

O resultado do silêncio sobre as acusações foi a companhia seguir conquistando ainda mais espaço – nessa altura, já tinha conseguido adentrar as carteiras dos grandes fundos internacionais, que investem somente em índices ou ações de grandes empresas consolidadas.

Em 2016, outra acusação veio à tona. Um grupo de operadores do mercado financeiro europeu, sob o pseudônimo de “Zatarra”, acusou a fintech de lavagem de dinheiro.

Não, nada aconteceu. Mas o que surpreende é que mesmo com essa nova revelação a empresa de revisão de contas da Wirecard, o colosso internacional Ernst & Young (EY), que verificava os balanços da companhia desde 2009, não contabilizou nenhuma irregularidade.

Portanto, ainda em 2016, a companhia entrou nos Estados Unidos após comprar a operação de cartões pré-pagos do Citigroup e também chegou no Brasil com a aquisição da startup mineira Moip – posteriormente comprada pela PagSeguro.

Já em 2018, a cotação dos papéis disparou, e a Wirecard passou a ser negociada no Dax, principal índice de ações da Alemanha. Seu valor de mercado chegou a impressionantes US$ 28 bilhões, ultrapassando nas casas decimais o do Deutsche Bank, principal banco do país.

Mediando o sucesso com as especulações, a fintech assegurava todo o mundo sobre sua solidez líquida, garantindo haver um depósito de 2 bilhões de euros guardado nos cofres do Bank of the Philippine Islands e no Banco de Oro Unibank. No fim, Markus Braun sempre apresentava motivos para que acreditassem na honestidade e integridade de sua companhia.

Você só tem conhecimento do que está lendo devido ao jornalista Dan McCrum, que criou a série de denúncias no Financial Times e insistiu em expor a verdade durante os 6 anos que analisou pistas de vendas forjadas e manipulação dos balanços da Wirecard.

Sua persistência não foi em vão: em 2020 o mundo conheceria uma das maiores fraudes contábeis da história da Alemanha.

O fim da gigante alemã

A Wirecard viu sua história de 20 anos desmoronar em apenas 10 dias com o surgimento de um escândalo que levou seu ex-CEO para a prisão e ameaçou diversas outras empresas que usam seus serviços.

Tudo começou depois da empresa receber um aporte contábil de US$ 1 bilhão do Softbank, em 2019. Com novas reportagens questionando a contabilidade da empresa, elevou-se a pressão dos investidores sobre a Wirecard, que contratou a KPMG para fazer uma auditoria especial.

Os auditores não localizaram os 2 bilhões de euros referente às reservas da empresa. Em maio de 2020, a Ernst & Young finalmente pediu à Wirecard provas da existência desse dinheiro.

E adivinhe? O dinheiro simplesmente não existia.

No dia 16 de junho de 2020, os bancos das Filipinas informam que os documentos eram falsos. No mesmo dia, as ações da fintech passaram de 104 euros para cerca de 2 euros, um recuo de 98%. A maior queda na história da Bolsa de Valores alemã em um único dia.

As instituições financeiras europeias e americanas imediatamente suspenderam as linhas de crédito para a Wirecard. Foi assim que a Wirecard se tornou insolvente.

Isso levou o então CEO Markus Braun a pedir demissão, para logo em seguida ser preso por suspeita de falsificação de contas (ele foi solto após pagar fiança de 5 milhões de euros).

A empresa de pagamentos foi a primeira do índice alemão DAX a falir, isso apenas dois anos depois de entrar para o benchmark, que reúne as 30 principais empresas do país.

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