QuintoAndar, Loft e outras startups bilionárias ganharam os holofotes nas últimas semanas por promoverem demissões em massa. O novo capítulo, primeiro de um período tortuoso para esse mercado, anunciou a chegada da crise em um setor que poucos imaginavam que ela alcançaria: as empresas de tecnologia. Não faz muito – cerca de seis meses atrás -, essas startups levantaram volumes recordes de capital. Mas o ritmo febril dos aportes e a escalada dos valuations em ritmo geométrico foi quebrado no começo deste ano.
As hipóteses sobre o futuro deste ecossistema apontam em direções diferentes, levantando questões que fazem até o mais experiente dos gestores ter dúvidas sobre o que vem pela frente. Mas especialistas ouvidos pelo BP Money acreditam que a tendência para o ano é que o setor fique mais pragmático dada a pressão por entregas, e os investidores, mais racionais sobre os aportes em startups. A aposta unânime é que este será um ano de correções dos valores no setor.
Primeiro porque houve uma queda geral dos ânimos para investimentos com o pessimismo no cenário global, o que jogou o mercado financeiro uma ponta conservadora. Conforme essas incertezas escalam, com a subida de tom nas crises políticas, o apetite para riscos está minguando.
Nos Estados Unidos, os aportes de fundos venture capital caíram 19% no primeiro trimestre deste ano, para US$ 144 bilhões, na comparação com o último período do ano passado. Foi a maior revisão de contas em dez anos, de acordo com o CB Insights. O número de negócios fechados nas terras do Tio Sam também recuou: 5%, ante os 8,8 mil acordos concluídos entre outubro e dezembro de 2021. No mesmo período, o valor de mercado das startups norte-americanas seguiu galgando em direção aos céus.
Nesse meio tempo, especula-se que o dinheiro mais caro lá fora favoreceria, no segundo momento, o cenário brasileiro. Com um mercado mais barato, as startups nacionais atrairiam investimentos estrangeiros, principalmente de fundos norte-americanos e chineses, que já vinham crescendo de forma expressiva nos últimos dois anos.
Esta tendência ainda não ganhou forma e, segundos dados recentes da Transferbank, há chances de que o mercado recue junto com o cenário global. O último levantamento da plataforma mostra que o ecossistema de startups na América Latina movimentou US$ 934 milhões em 63 negócios em março, uma queda de 15% na comparação com o mesmo mês do ano passado.
O Brasil captou 48% do capital direcionado para a região, em 36 acordos naquele mês. Maior mercado na região, o tombo nos valores movimentados no País foi de 52% na base anual, 37 pontos percentuais acima da retração dos investimentos em toda a América Latina.
Para os especialistas, trata-se do caráter inevitável da crise, que faz com que ela “bata em qualquer porta”. Na prática, até as startups sofrem quando a tempestade perfeita da crise se forma. Caso de 2022, que já trazia um horizonte nebuloso pelos efeitos de dois anos de pandemia e ficou mais carregado com as consequências da escalada da guerra na Ucrânia.
Vittorio Danesi, CEO da Simpress e um dos fundadores do grupo de investidores anjo BR Angels, acredita que a virada de cenário no setor de investimentos acaba sendo saudável para o sistema de startups. “Nos últimos dois anos, vimos uma ascensão sem guarda dos valuation, o que provocou essa ressaca no mercado”, disse. Danesi lembra ainda que o efeito de correção dos valores já atingiu as big techs.
Para Léo Xavier, CEO do grupo Môre, a nova fase de correção atinge não apenas as estratégias dos fundos de venture capital, mas também as de private equity, o que vem provocando essas revisões. Ambos os especialistas apontam que o ecossistema estava hiperdimensionado globalmente. Para o Brasil, onde o nível de maturidade do setor é menor, isso significa que os negócios passarão a ser mais questionados.
A lógica é que, com a profundidade da crise macroeconômica, a vantagem competitiva do real ante outras moedas não teria um efeito tão signficativo a ponto de fazer o mercado superar os níveis de investimentos dos anos anteriores, quando o setor bateu números recordes. “O câmbio tem um impacto moderado nesse ambiente porque o custo do dinheiro está alto no mundo todo”, reiterou Xavier.
Única certeza no setor é que startups serão mais pressionadas por resultados
Embora não crave o caminho que o mercado deve seguir, o que depende de estratégias próprias, Patrick Arippol, investidor e co-fundador do fundo Alexia Ventures, reconhece que a elevação da taxa de juros vai afetar a liquidez por aqui. O Brasil enfrenta ainda desafios regulatórios e, por isso, tem uma margem para maturação maior que em outros países. “Mesmo que esse ambiente de startups seja menos suscetível aos ciclos econômicos, não está imune”, afirmou.
O choque de realidade vem acompanhado de cobranças para geração de caixa, gestão mais parcimoniosa e, possivelmente, a antecipação das metas nos planos de negócios, apontam os especialistas. “Há mais rigor no mercado”, reiterou Danesi.
Tanto é que unicórnios que levantaram aportes milionários e expandiram de forma acelerada no último ano anunciaram demissões recentemente, bem “na virada do período de apresentação dos resultados do trimestre”, lembrou Xavier.
Quem pode sofrer no curto prazo são os novos negócios. Isso porque, embora não estejam blindados, os investidores dos unicórnios tendem a seguir a lógica do “too big to fail”, explicou Xavier. Por terem mais capital alocado nessas companhias, os grandes fundos tendem a concentrar os aportes nesses negócios, em que há muito mais em jogo. “Mesmo ante um declínio dos volumes aportados, haverá cobranças para entrega de resultados mais significativos. Neste sentido, as grandes startups ficam em vantagem.”
Para Dan Kawa, chefe de investimentos e sócio na TAG Investimentos, a lógica segue o sentido contrário. Em comentário sobre o declínio dos investimentos no mercado de venture capital no LinkedIn, Kawa acredita que “empresas nos estágios mais iniciais, ainda estão se aproveitando dos ‘cheques’ que são menores.”
De toda forma, não é como se a fonte fosse secar no mercado, lembram os especialistas ouvidos pelo BP Money. A mudança é que os processos decisórios tendem a ficar mais pragmáticos e os investimentos, mais “racionais”. “O negócio precisa ser mais lúcido para o investidor, e os gestores de startups, mais cautelosos com caixa e entregas”, afirmou Danesi. Apenas correção de postura, explica Xavier.
Investimentos em startups foi recorde em 2021, mas crise deve frear o ritmo
Nos últimos anos, as startups estiveram em festa. Na América Latina, o volume de investimentos de venture capital chegou a US$ 15,7 bilhões no ano passado, patamar recorde e superior ao montante levantado nos dez anos anteriores, segundo dados da associação Lavca (Association for Private Capital Investment in Latin America). O Brasil, que mordeu 48% desse bolo, ganhou oito unicórnios só em 2021. Hoje, já são mais de 28 startups que ultrapassam um valuation de US$ 1 bilhão no País.
Em relatório ao mercado, a plataforma Distrito reitera que 2021 será lembrado como “o ano que mudou o ecossistema de inovação do Brasil de patamar”. O volume de investimentos esteve 166% acima de 2020 e superou o acumulado dos três anos anteriores. Embora reconheça uma mudança de tom com a crise econômica, a consultoria defende que a liquidez do setor de startups deve atrair investidores internacionais e manter o mercado brasileiro aquecido.
Só que a nova balada que embala o mercado já impõe um ritmo mais lento e focado em entrega. O “The Wall Street Journal” chamou a atenção para o ceticismo que ronda o Vale do Silício, após as big techs apresentarem resultados abaixo das expectativas na última semana. A Alphabet, dona do Google, e a Amazon decepcionaram investidores com seus números abaixo das projeções.
Xavier lembra que a companhia de Jeff Bezos passou muitos anos apoiada pelos fundos até começar a gerar lucro. “Quando uma companhia dessas retorna os investimentos, a fatia de proventos precisa ser mais generosa, para compensar a espera”, afirmou.
O atual receio com o futuro do mercado se soma ao gosto amargo ainda na boca de alguns investidores, vindos da lembrança de casos como Uber, Lyft, WeWork, Pinterest e Snapchat. As startups vêm falhando consistentemente em gerar lucros. Só na Uber, as perdas superam US$ 25 bilhões.
Não houve fracasso semelhante no Brasil, mesmo porque o mercado ainda não chegou nessas cifras. À exceção do Nubank, que estreou na bolsa de Nova York valendo US$ 41,5 bilhões há cinco meses, como o banco mais valioso da América Latina, mais nenhum unicórnio brasileiro está perto hoje de ultrapassar um valuation de US$ 10 bilhões. Ainda assim, o neobanco acumula avaliações mistas no mercado, com recomendações neutras e de venda, após resultados frustrantes nos últimos trimestres. O valor das ações derreteram 35,93% nesse período.
Mesmo com a alta dos juros, as fintechs são as líderes de captação no setor. Segundo relatório da Distrito, somadas com as insurtechs, as plataformas de serviços financeiros receberam 25% dos investimentos dos fundos de venture capital no primeiro trimestre deste ano. Mas não saem ilesas às mudanças de humor no mercado. Na última semana, a Creditas admitiu à reportagem da “Bloomberg Línea” ter demitido onze pessoas.
Demissões nas startups refletem pressões por entregas melhores
O número de desligamentos na Creditas é pequeno perto de QuintoAndar, Loft e Facily, que, juntas, demitiram ao menos 500 pessoas em menos de uma semana. Para Léo Xavier, a infeliz sequência de demissões em massa segue, possivelmente, a apresentação de resultados do primeiro trimestre aos investidores, que teria seguido a pressão para revisar as operações e redimensionar o crescimento nessas startups.
Outra conta que chega agora à mesa é a da artificialização dos salários nas startups. O especialista conta que, para atrair talentos e sustentar sua acelerada expansão, essas empresas elevaram os patamares de benefícios ou apressaram o crescimento de funcionários em suas carreiras. “No fim do dia, ninguém foi poupado”, declarou Xavier, em referência ao fato de que os gastos exorbitantes com pessoal levaram aos cortes.
Para o CEO do grupo Môre, o processo de demissões em massa é prova de se tratar, “de irresponsabilidade da gestão”, afirmou. Ele lembra que os indicadores de mercado – mesmo os menos previsíveis, como os decorrentes da guerra na Ucrânia – não surgiram de forma repentina. “Houve tempo para conduzir o processo de forma mais equilibrada”. As revisões seguiram um período de cenário hiperdimensionado.
Depois do boom de IPOs de startups em 2020, “com valuations extremamente elevados”, recordou Danesi, a bolsa passou a penalizar ações das empresas que prometeram muito e entregaram pouco. No grupo de small caps, os papeis de startups acumulam recordes de desvalorização. Com a piora do cenário econômico, hoje passam longe das recomendações das carteiras.
Para muitas, como a Mosaico, que, depois perder 66% do valor das ações em um ano, foi comprada pelo Banco PAN, a festa acabou definitivamente.
Facilitadores e modelos de negócios B2B são apostas mais seguras
Mas como o mercado ainda deve movimentar bons números, especialistas apostam na força de startups com despesas mais modestas. Vittorio Danesi, da BR Angels, acredita que, para as plataformas com modelos B2B, de nichos como SaaS (software as a service), por exemplo, que consomem pouco caixa e têm demanda mais resliente, o horizonte é mais animador. “Ainda que haja empresas consolidadas no mercado B2C, o modelo para o consumidor final tende a ser mais custoso”, disse.
Léo Xavier aredita que esta é uma “questão de US$ 1 milhão – ou mais”, lembrando como as incertezas deixam as perspectivas para o setor ainda nebulosas. Mesmo assim, o especialista se arrisca. Para ele, as plataformas facilitadoras devem ser a bola da vez no mercado. “Os enablers com soluções corporativa tendem a apresentar risco menor para investimentos”, ponderou.
Xavier não parece estar distante da visão no mercado investidor. Ao “Brazil Journal”, a gestora ABSeed confirmou ter levantado R$ 100 milhões para aportes no “nicho do nicho”, como chamou as startups focadas em SaaS.
Após as demissões, QuintoAndar, Loft, Facily e Creditas seguem com poucos sinais de crises no negócio – hipótese que rechaçam completamente. O recálculo de rota reflete o aperto nas contas e o aumento das cobranças por resultados melhores, mas não deve afetar o planejamento de longo prazo. Rondadas pelos rumores sobre possível abertura de capital, o IPO certamente não saiu do horizonte desse unicórnios. Com a recuperação do cenário econômico nos próximos anos, talvez o setor volte ao ritmo de dias melhores – quem sabe até com operações no azul.