É o fim da Netflix (NFLX34)? Calma lá, demissões e perda de assinantes refletem reajuste no mercado

Para analistas, a combinação de fatores macroeconômicos e aumento da concorrência colocam a gigante em uma posição mais crítica que seus concorrentes, mas cenário geral é de pressão sobre o setor

A Netflix (NFLX34) demitiu 150 pessoas nesta terça-feira (17), chocando quase ninguém no mercado. Quem acompanhou a escalada dos ânimos dos investidores nas últimas semanas sabe que a empresa está em uma situação difícil. Há um mês, quando reportou a perda de 200 mil assinantes no primeiro trimestre, a companhia pegou muita gente de surpresa, já que o consenso entre analistas era a adição de 2,5 milhões de assinantes no período. O golpe foi ainda mais forte depois que a plataforma apresentou uma projeção de fuga de mais 4,5 milhões de assinantes ainda neste ano.

A cereja do bolo foi a divulgação do resultado da Disney+ na quarta-feira 11 de maio, que apontou ter expandido sua base com 7,9 milhões de novas assinaturas. Poderia ser a “morte anunciada” da Netflix, como vem sendo alardeado em artigos nas redes sociais, mas especialistas ouvidos pelo BP Money pedem mais cautela com tal leitura. 

Para William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue, há um movimento mais amplo no mercado que faz com que as ações de tecnologia sofram com a reavaliação dos valuations – que andavam muito esticados – e com a revisão das perspectivas exageradas de crescimento. “Desde a retomada do cenário de ‘normalidade’, isto é, das atividades às quais já estávamos habituados antes da pandemia, a narrativa das empresas de streaming deixou de caber no novo momento”, disse. 

Essas empresas estão sob pressão com o arrocho das condições para investimento no mercado norte-americano, como em todas as indústrias, mas há alguns pontos cruciais para entender o setor do streaming, especificamente. Primeiro: a “batalha” Netflix versus Disney+ não é o que mais afeta esse retrato. 

Apesar do crescimento da base de assinantes, os resultados da plataforma da Disney não foram tão bem recebidos pelo mercado, que chegou a derrubar o valor dos papéis em 3% no dia da divulgação. A divisão (que inclui Disney+, ESPN+ e Hulu) teve um prejuízo líquido de US$ 900 milhões, três vezes maior na base anual. 

O salto de 4% no número de assinantes nas plataformas também teve um impacto pequeno no caixa. Foi um crescimento custoso, na verdade, porque não se refletiu ainda em retorno para a operação – pelo contrário, veio acompanhado de aportes substanciais para aquisição desses novos clientes. A receita global por assinante da Disney+ entre janeiro e março subiu 9%, saindo de $ 3,99 para $ 4,35. Além disso, o guidance da companhia é alcançar o lucro com a operação só em 2024, conforme crescer sua base de usuários.

Outro ponto a ser considerado, conforme indicado pelos especialistas nesse mercado, é que, na média, Netflix e Disney+ disputam públicos com perfis distintos. “O assinante não vai priorizar uma ou outra, simplesmente porque os tipos de conteúdos são diferentes”, disse André Kim, sócio e analista de Investimentos da GeoCapital.

O crescimento de uma, portanto, não significa necessariamente a derrota da outra. Na verdade, a disparidade de resultados neste começo de ano reflete mais o fato de os agentes estarem em pontos de maturidade diferentes. A Netflix, como pioneira do setor, estaria entrando num capítulo de desaceleração do crescimento. 

Por ter surfado sozinha a onda do streaming por muito tempo, os vultosos números de assinantes e o case da plataforma impressionaram. Esse pioneirismo da empresa também a fez se sobressair no mercado de capitais, como uma das tech queridinhas dos investidores, já tendo alcançado valuations que chegavam a mais de 50 vezes o faturamento. 

De três anos para cá, a Netflix vinha enfrentando uma escalada substancial de concorrência, com empresas como HBO, Amazon e Paramount elevando as apostas em suas plataformas de streaming. O movimento não passou despercebido por investidores, mas foi interpretado como a ascensão do novo modelo de entretenimento doméstico, digital e por assinatura, durante a pandemia.

Kim, da GeoCapital, aponta que o mercado deu sinais de reacomodação nesse período, com o aumento das fusões e das aquisições e até mesmo a “morte” de muitos projetos – como foi o caso da CNN+, encerrada menos de 30 dias após o lançamento. “A fase de crescimento acelerado já passou, e de agora em diante o setor precisará equilibrar expansão e entrega com uma passada mais lenta e sustentável”, afirmou. 

Todos os grandes concorrentes têm em comum hoje estarem sofrendo com a maior cobrança por resultados “saudáveis” para o bolso do investidor, cansado de queimar dinheiro pela distante promessa de rentabilização. Leia-se: o mercado está quase que exclusivamente focado na última linha do balanço, pela qual consegue medir o retorno de curto prazo do negócio.

É uma mudança de interpretação, avaliou Alves, da Avenue. “Essas empresas precisam contar outra história para os investidores, só falar de crescimento já não é mais suficiente”, disse. Mas reescrever o roteiro do negócio tem se provado um processo custoso, como a própria Netflix mostrou recentemente.

Reajustes do mercado levaram ao tombo de US$ 221 bi no valuation da Netflix

Os papéis da Netflix já não vinham bem desde o início deste ano, quando a plataforma divulgou um quarto trimestre de 2021 abaixo das expectativas do mercado. À medida que o céu se fechava para os investimentos de risco, a situação da companhia foi piorando. 

De lá para cá, com as baixas nos mercados globais e o revés no resultado da empresa nesse começo de ano, o valuation da Netflix mergulhou quase em queda livre: 72% de perda desde sua máxima histórica, em outubro passado. 

O tombo equivale a US$ 221 bilhões, dos US$ 305,9 bilhões de seis meses atrás para os cerca de US$ 85 bilhões que a companhia vale hoje na visão dos investidores. Para Kim, a queda da Netflix reflete as perspectivas de crescimento da base de assinantes. “Então o que estamos vendo nessa correção dos valores hoje é um ajuste de expectativas futuras”, disse o analista da GeoCapital.

Uma debandada se iniciou ainda em abril: Tiger Global, Winslow Capital e Scopus Asset são algumas das gestoras que zeraram as posições de Netflix nas suas carteiras. Mas foi o megainvestidor de Wall Street Bill Ackman quem liderou o movimento de saída, ao vender todas suas ações na companhia logo após a apresentação dos resultados do primeiro trimestre. Para o gestor chefe da Pershing Square, valeu assumir um prejuízo de US$ 400 milhões para se ver de vez fora desse barco.

Os sinais estavam todos lá, então não foi com grande espanto que os 150 funcionários receberam suas cartas de demissão na última terça-feira (17). “Isso [o desligamento] está associado a notícias que, tenho certeza, muitos de vocês viram sobre a queda do negócio, o que ajuda em parte a aliviar a dor de ser demitida”, disse uma das ex-colaboradoras da Netflix em post no LinkedIn. 

Há duas semanas, a empresa já havia cortado 25 pessoas do departamento de marketing nos Estados Unidos, incluindo 12 do time da recém-criada plataforma de conteúdo Tudum. Ainda há a perspectiva para mais 70 desligamentos, segundo a própria companhia, e analistas apontam para possíveis reduções nas regionais.  

A inflação pressiona os custos da operação, que aumentaram 13,3% na base anual. Só que, mesmo com a redução do quadro de funcionários, motivada principalmente pelo aumento dos salários nos EUA, não é possível para uma empresa do porte da Netflix enxugar muito mais. “Na frente de conteúdo, a empresa não pode cortar custos, ou estaria dando um tiro no pé, porque esse é o grande diferencial no setor”, disse Kim. 

Daí a Netflix começou a rever os preços de suas assinaturas e até já anunciou um novo plano, a valores mais baixos, e que deve incluir propagandas. “O problema da empresa foi ter sido reativa, quer dizer, ter esperado o mercado ficar tão negativo para anunciar esses pacotes”, avaliou o analista da GeoCapital. 

O que vem acontecendo com a Netflix, para os especialistas, seria um fenômeno natural no mundo dos negócios: é o crescimento não linear. Quer dizer, esses solavancos fazem parte da trajetória de todas as companhias – mesmo as grandes.

Por isso as aventadas teorias sobre a falência do modelo de negócio da gigante do streaming seriam alarmistas, segundo os analistas ouvidos pelo BP Money. Claro que a combinação de fatores macroeconômicos e do setor coloca a Netflix em uma posição delicada hoje, e a empresa deve seguir num radar crítico no curto prazo, mas nem tudo está perdido para a plataforma que consolidou globalmente a cultura de maratonar séries. 

Conteúdo é rei: o campo de batalha do streaming é a crítica

Há uma conquista inegável da Netflix para o streaming: a empresa se provou como um agente de disrupção do mercado cinematográfico e de audiovisual, que por mais de um século foi dominado pelos grandes estúdios. Nesse universo, o pilar de qualquer negócio é o conteúdo. 

Por isso, o campo de batalha do streaming não é necessariamente o bolso do consumidor, mas uma etapa anterior a ele: a crítica – seja ela qualificada ou não.

Seguindo essa lógica, Kim explica que a régua para avaliar o potencial dessas empresas não está na base de assinantes – cujo crescimento seria mais uma consequência -, e sim na qualidade do conteúdo. “Precisamos olhar para o número de Oscars e indicações em premiações consagradas, que mostram reconhecimento e atraem público, além da recorrência com que a plataforma lança produções ‘blockbusters’”, afirmou. 

Para o sócio da GeoCapital, ter ao menos uma obra que seja um sucesso de audiência a cada trimestre é essencial para sustentar a base de assinantes e proteger a posição da empresa no mercado. “Pensemos o caso da HBO, que cresceu nesses últimos anos porque tinha gente que assinava a plataforma para assistir a uma série específica, sucesso de crítica ou de público.”

No ano passado, a Netflix alocou US$ 17 bilhões para a produção de conteúdo. A divisão de mídia da AT&T, que engloba as operações da HBO, da HBO Max e Warner, investiu US$ 35,7 bilhões em 2021 nessa frente, mais que o dobro, mas para três produtos. Já na The Walt Disney Company, os custos com produção de conteúdo para todos os canais da empresa somaram US$ 13,2 bilhões. 

A briga é acirrada entre os gigantes e segue um caminho sem volta, segundo os analistas, porque é nessa ponta de produção (e compra) de conteúdo que as empresas devem se diferenciar.

Não será possível descer o patamar de gastos com conteúdo, portanto, já que isso afetaria o principal produto do streaming, mas os critérios para gestão desse capital devem ficar mais rigorosos daqui para frente. “A Netflix anunciou o cancelamento de algumas séries que, segundo a empresa, atingiram sua maturidade, e outras que tiveram baixa audiência, mas dentro de uma faixa de normalidade para esse tipo de negócio”, ponderou Kim.

Alves, da Avenue, reforça que o setor traz hoje uma nova perspectiva também sobre a manutenção da base de assinantes. “Diferentemente da TV a cabo, em que a migração é lenta mas também duradoura, no streaming, a mudança é rápida. Não há a mesma percepção de fidelidade, porque esse vínculo é mais flexível”.

Diversificação da receita é algo necessário para a Netflix

Pela avenida de crescimento que veem pela frente, a tendência é que os concorrentes da Netflix mantenham o crescimento do número de assinantes, enquanto a empresa deve relutar para sustentar sua base ao menos até o próximo ano. Após o reajuste dos preços, deve ser a preterida ante as novidades desse mercado.

A gigante do streaming está em um estágio mais desafiador para conquistar novas assinaturas, especialmente no momento em que o mercado global se debate com a inflação. A queda do poder aquisitivo afeta o “bolso para entretenimento” do consumidor, isto é, a renda disponível para consumo desse tipo de serviço. 

O primeiro obstáculo que a Netflix está tentando remover do seu caminho é o valor do seu produto. O fato de ser a mais cara entre todas as plataformas a coloca na mira do assinante. Ao menor sinal de declínio da qualidade de conteúdo, a plataforma é imediatamente comparada a seus rivais, sejam eles HBO Max, Apple TV, Amazon Prime ou até mesmo o YouTube. 

O anúncio da oferta de pacotes mais acessíveis – mas com anúncios ou, possivelmente, com a qualidade de vídeo reduzida -, que devem chegar ao mercado até o fim deste ano, prova que a Netflix está tentando correr atrás do prejuízo. Só que a novidade não foi bem recebida pelos assinantes, agora acostumados ao tíquete médio mais baixo para terem acesso a um catálogo variado de filmes e séries. 

A Disney+, que havia tomado a mesma decisão em março, reviu sua proposta após assistir à forma que a Netflix foi retaliada. Nesta quinta-feira (19), a companhia anunciou que seu novo produto “não terá tantos anúncios quanto outras plataformas de streaming”, e os conteúdos infantis não serão alvo dessas mudanças com propagandas.

É uma sinuca de bico: não há espaço para reduzir preços, o que tornaria as companhias ainda menos lucrativas, nem para aumentar valores em um cenário de inflação, avalia Alves. O estrategista-chefe da gestora Avenue acredita que um caminho para essas empresas é que se tornem menos refém do streaming, como já é o caso da Disney e da Amazon, por exemplo.

Para os conglomerados, a plataforma de streaming já representa a diversificação de receita, mas no caso da Netflix (NFLX34), não. “A companhia chegou a falar em gamificação e em vender produtos num e-commerce próprio, mas a realidade é que ela precisará criar novas frentes de monetização”, afirmou Alves. Dessa forma, a gigante teria um colchão mais macio para amortecer as quedas, caso volte a se deparar com novos solavancos no mercado. 

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