Uma decisão da Justiça do Rio Grande do Sul determinou que o Carrefour arque com os honorários dos advogados que representaram duas entidades civis durante a discussão que levou a um acordo, firmado em junho, para o caso da morte de João Alberto Freitas. A defesa do Carrefour diz que irá recorrer da decisão.
Em novembro do ano passado, na véspera do Dia da Consciência Negra, Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancando e morto por seguranças em uma unidade da rede em Porto Alegre. A agressão foi registrada em vídeo por testemunhas.
O pagamento dos honorários dos advogados das entidades civis, Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos, foi um dos motivos de impasse entre os lados na época da assinatura do acordo. No fim, a demanda acabou não entrando no texto, e ficou pendente de decisão posterior na Justiça.
O valor foi fixado em 3% do total do acordo firmado em junho, de cerca de R$ 115 milhões, que evita processos no âmbito cível sobre o caso contra o Carrefour, prevendo uma série de ações antirracistas, incluindo criação de bolsas de estudo. A rede também firmou acordos com familiares de Freitas.
O juiz João Ricardo dos Santos Costa, da 16ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, diz na decisão assinada na quarta-feira (21) que o tema envolve a questão de uma representação adequada, ponto central no processo coletivo.
“As empresas com forte potencial econômico têm capacidade de contratar os melhores advogados para atuarem nos tribunais e patrocinarem uma defesa efetiva como é desejável. O mesmo deve ser garantido aos que defendem os interesses das populações prejudicadas com as violações postas no Judiciário”, escreve ele na decisão.
“O deferimento de honorários às autoras é a medida mais adequada para preservar a garantia da acessibilidade à justiça. Notadamente em um litígio que coloca na pauta o racismo estrutural existente na sociedade brasileira e reconhecido no Termo de Ajustamento de Conduta celebrado entre as partes. Neste contexto, e pelo fato do Judiciário ser um espaço de resistência, a representação judicial adequada da população negra, o acesso é central ao processo de superação de uma chaga social histórica”, segue.
O juiz ressalta ainda que o caso resultou em compromisso assumido pelas empresas e que os custos do processo e dos profissionais que atuaram nele devem ficar ao encargo das empresas rés.
Já Caetano Berenguer, um dos advogados do escritório Sergio Bermudes, que representa o Carrefour, diz que, segundo a jurisprudência existente, não há que se falar em sucumbência, quando não houve condenação contrária à parte.
Sucumbência é quando a parte derrotada deve arcar com os custos de um processo. Ou seja, no entendimento da defesa, como a ação contra o Carrefour nunca foi julgada devido ao TAC assinado, não há parte derrotada, o que faria a sucumbência perder o propósito.
Em uma das peças apresentadas antes da decisão, o Carrefour diz que o pedido “só faz manchar o relevante legado deixado por todas as partes que efetivamente se envolveram na negociação de um instrumento histórico –que, inclusive, chegou a ficar refém da sanha dos patronos”.
“Na falta de melhores argumentos, as autoras não fazem mais do que fabricar uma tese jurídica, que carece de qualquer contorno claro ou minimamente verossímil –quando muito, panfletário”, afirma ainda o documento.
Por meio da assessoria de imprensa, o Carrefour diz que segue “comprometido com a luta antirracista que se materializa no maior investimento privado já feito para redução da desigualdade racial no Brasil”, se referindo ao termo de ajustamento de conduta e às ações previstas nele.
Os advogados da Educafro também pretendem recorrer da decisão, porém, questionando o valor determinado pelo juiz. Segundo o advogado Márlon Reis, por lei, o pagamento mínimo seria 10% do valor do acordo –ao invés dos cerca de R$ 3,4 milhões definidos, R$11,5 milhões.
Reis diz que a morte de João Alberto não foi uma ofensa apenas a ele e sua família, mas a toda a equidade racial que deveria existir na sociedade brasileira.
“Nós trouxemos um elemento novo, o dano causado ao Brasil. A igualdade racial deve interessar a todos os brasileiros”, diz ele.
“Essa é uma causa de antirracismo estrutural, mostrando que não foi só uma questão individual, mas que ela é uma consequência da estrutura racista brasileira, desse ambiente que insiste em sobreviver tantos anos depois da abolição da escravatura”.
Ele destaca ainda o papel que as entidades tiveram na construção do texto do acordo, salientando que a maioria do dinheiro foi encaminhada à ações de educação, área a qual a Educafro se dedica e sua principal pauta de discussão.
“Não há um negro no debate fora a Educafro e o Centro Santo Dias. Os membros do Ministério Público, da Defensoria, do Carrefour, eram uma assembleia de brancos para decidir sobre o caso João Alberto em termos coletivos. A magnitude da presença da sociedade civil nessas ações é muito bem exemplificada nesses casos”.
Para o diretor executivo da Educafro, Frei David Santos, a primeira vitória foi conseguir a indenização coletiva por meio do acordo, em junho, mas ele vê ainda a decisão de agora, sobre os honorários, como pioneira no sentido de reconhecer pagamento a advogados de movimentos em uma ação coletiva.
“Temos certeza de que essa vitória vai ampliar o leque de ferramentas jurídicas usadas pelos líderes dos movimentos sociais, para defender nosso povo afro e demais excluídos”, escreveu à Folha. “E, aqui está o mais bonito: investiremos esse dinheiro para construirmos o primeiro de muitos escritórios afros nos quatro cantos do Brasil, para atender às demandas do nosso sofrido povo afro-brasileiro. Estou feliz, muito feliz”.
O primeiro escritório do tipo, segundo o advogado das entidades, deve ser aberto em São Paulo.