Os números de pedidos de recuperações judiciais têm registrado altas acentuadas ao longo da última década. Levando em consideração somente os últimos dois anos, o número de empresas que buscam o “remédio judicial” apresentou um radical salto de 140% de solicitações deferidas.
Os dados analisados pela reportagem foram extraídos do Relatório de Falências e Recuperações Judiciais da Serasa Experian, que considera os quatro primeiros meses de cada ano no intervalo entre 2006 e 2024.
O endividamento em massa acaba sendo uma consequência do cenário macroeconômico nacional, que afeta diretamente as empresas, sejam elas grandes, médias ou de pequeno porte.
“Frequentemente as empresas que acabam distribuindo pedidos de recuperação efetivamente necessitam do remédio judicial. O grande problema costuma residir na demora da tomada de decisão, justamente por ser um tema difícil para o empresário”, afirmou o advogado especializado em Direito Empresarial e sócio do Oliveira e Nepomuceno Advogados.
De acordo com Regina Helena Couto, economista especializada em análise setorial, as empresas brasileiras estão enfrentando uma combinação de fatores que impactou negativamente a geração de caixa e as margens operacionais, “culminando em um movimento de forte expansão das recuperações judiciais”.
“A economia brasileira passou por desafios significativos nos últimos anos, com dois períodos recessivos marcantes”, destacou a especialista.
Assim como Couto, o economista e investidor da Corano Capital, Bruno Corano, destacam o aumento da taxa básica de juros como um dos principais fatores agravantes para tal cenário. A economista lembra que a Selic subiu de 2% em 2020 para 9,25% em 2021 e atingiu 13,75% em 2022, “impactando significativamente as despesas financeiras das organizações”.
“É uma combinação de fatores, mas, notoriamente, o aumento dos juros fez com que o acesso ao capital e ao financiamento se tornasse muito mais caro. Qualquer empresa que já tivesse algum grau de endividamento passou a gastar mais para financiar suas dívidas”, explicou Corano ao BP Money.
“Aliado a isso, a inflação puxou os custos operacionais de qualquer negócio para cima. E nem sempre é possível repassar imediatamente os custos para o consumidor por produto ou por serviço”, completou.
O economista integra a análise observando também uma diminuição no consumo em diversos setores, o que, somado aos outros dois fatores, resultou no encerramento das operações de empresas que já enfrentavam uma fase extremamente difícil durante a pandemia.
Recuperação judicial x extrajudicial
Empresas enfrentando dificuldades financeiras têm à disposição dois procedimentos legais para renegociar suas dívidas: recuperação judicial e extrajudicial. Ambas estratégias têm o objetivo de facilitar as negociações com credores.
Na recuperação extrajudicial, a empresa opta por negociar uma parte das dívidas diretamente com um grupo específico de credores ou fornecedores, deixando outra parte fora do processo.
Para enfrentar sua dívida de 4,1 bilhões de reais, a varejista Casas Bahia (BHIA3) anunciou recentemente que optou pela recuperação extrajudicial como parte de sua estratégia de reestruturação financeira.
Neste tipo de processo as negociações iniciam-se fora do escopo judicial, diretamente com os credores principais como Bradesco e Banco do Brasil, que já aprovaram o plano.
Este método implica em menos formalidades e processos, uma vez que não envolve a supervisão de um tribunal ou de um administrador judicial.
A empresa convoca os credores para uma negociação conjunta, onde são delineados os direitos, condições de pagamento e obrigações de cada parte, culminando na formalização do acordo mediante a assinatura de todos os envolvidos.
Do outro lado, a Casa do Pão de Queijo, uma das principais redes de cafeteria do Brasil, é um recente caso de companhias que iniciou o processo de recuperação judicial, protocolado na sexta-feira (28) em Campinas.
O pedido abrange a CPQ Brasil e suas 28 filiais localizadas em aeroportos, excluindo as 170 franquias da rede. O processo está focado nas lojas próprias e não afeta as franquias.
Segundo o pedido, a rede possui um passivo de R$ 57,5 milhões a ser renegociado, distribuído entre R$ 244,3 mil devidos a trabalhadores, R$ 55,8 milhões a credores quirografários sem garantias, e R$ 1,3 milhão a microempresas e empresas de pequeno porte. Os principais credores incluem os bancos Itaú e Santander, além do aeroporto de Guarulhos.
Crise no varejo e consumo
Grupo Dia, Americanas (AMER3), Livraria Saraiva (SLED4), Livraria Cultura, SouthRock (Starbucks, Subway) e agora Casa Pão de Queijo: o que a crise por trás dessas três empresas têm em comum?
Segundo análises feitas por especialistas consultados pela reportagem, a questão reside na complexidade de satisfazer as necessidades dos consumidores brasileiros e estabelecer uma presença sólida no mercado nacional.
Para alguns especialistas, além dos recortes macroeconômicos citados, grande parte dessas redes foram afetadas pela redução de consumo demonstrando pouco domínio na compreensão do perfil do consumidor brasielrio e criar raízes no mercado nacional.
Para Max Mustrangi, especialista em recuperação de empresas e CEO da Excellance, a Americanas (AMER3) se destaca pela necessidade de acionistas com recursos substanciais e pelo interesse dos bancos credores, fundamentais para manter a empresa à tona diante de dívidas elevadas.
“Sem muitas dúvidas é o caso da Americanas. Se não fossem acionistas com bolsos muito fundos, amarrado com o interesse dos bancos com quem tem as dívidas, que são valores muito elevados, isso geraria um caso quase que de falência”, afirma.
Para as Casas Bahia (BHIA3), Mustrangi identifica um desafio semelhante, ressaltando a dificuldade de operar com margens estreitas em um ambiente de juros elevados e consumidores com menor poder aquisitivo.
“Uma margem muito estreita, usando muito capital investido, capital de giro e ativo num momento de taxa de juros elevada e consumidor empobrecido. Então, também é uma situação extremamente difícil, mas se tivesse que comparar as duas, acho que o caso das Americanas é pior”, avaliou.
Quanto à Saraiva, Cultura e SouthRock, empresas já em recuperação judicial ou buscando novos parceiros financeiros, Mustrangi destaca a necessidade crucial de encontrar administradores com recursos financeiros sólidos.
“A Southrock também, mas ela achando outro novo master franqueado com dinheiro, já põe para voltar a rodar, arruma a operação e vai embora, então aqui é muito mais o caso de achar um novo administrador para essa empresa com bolso fundo”, compara.
Sobre Polishop e Grupo Dia, o economista comenta sobre as elevadas dívidas e as pressões econômicas, enfatizando as dificuldades enfrentadas pelas empresas para se adaptarem ao atual cenário econômico brasileiro.
“No fundo, são todos os casos iguais, empresas que se endividaram demais, não tem geração de caixa operacional suficiente, ainda mais agora abalada pela questão da economia, são todos casos muito complicados”, conclui Mustrangi.
Serviços e infraestrutura também não saem ilesos
A situação é preocupante sob todos os aspectos. Um terço das 20,8 milhões de empresas ativas no país, tem sido afetadas, desde microempresas, historicamente vulneráveis em períodos de taxas de juros elevadas, até grandes corporações que impactaram o mercado com crises bilionárias, como, Light (LIGT3), Oi (OIBR3), 123milhas e Gol (GOLL4).
Ao BP Money, o advogado especializado em Direito Empresarial e sócio do Oliveira e Nepomuceno Advogados, Victor Nepomuceno, destaca que o setor que lidera os pedidos de recuperação judicial no Brasil é o setor de serviços.
“O setor que mais emprega no Brasil, intensivo em mão-de-obra, é o que mais tem sentido os impactos adversos da desaceleração da economia”, avaliou.
O advogado mencionou que o alto custo contributivo da folha de salários e a insegurança jurídica têm um impacto negativo no setor, o que resulta no aumento dos pedidos de recuperação judicial.
Além disso, destacou que os embates legislativos também são um fator contribuinte para esse cenário. Ele observou que recentemente o setor de serviços enfrentou dificuldades devido à batalha entre o Congresso Nacional e a Presidência da República sobre a questão da desoneração.
“Talvez o grande tempero para tantos problemas nem seja oneração (ou a desoneração), mas sim a imprevisibilidade jurídica, que acarreta grande insegurança”, completou.