Netflix (NFLX34) está ameaçada? Inflação é choque de realidade para o mercado de streaming

Com a queda no número de assinantes, investidores seguem atentos à capacidade das plataformas de responder à crise

A Netflix (NFLX34) causou um novo furor no mercado. Desta vez, não pelo anúncio da nova temporada de suas séries mais badaladas, como “Stranger Things” ou “The Crown”, ou de algum filme blockbuster, mas por ter perdido 200 mil assinantes no primeiro trimestre deste ano, na primeira queda em dez anos. Só que o banho de água fria nos investidores veio na sequência, com a projeção da empresa de perder mais 2 milhões de assinaturas no próximo trimestre. Os números em si não são a grande ameaça ao negócio, uma vez que representam cerca de 1% da base de usuários da companhia, mas sinalizam um novo tempo para o mercado de streaming. 

Em 2020, as plataformas, como a Netflix, surfaram a onda do entretenimento doméstico, com a explosão da demanda provocada pelas restrições de circulação na pandemia. Agora, no entanto, precisam lidar com dramas bem mais reais, como a inflação global e a guerra na Ucrânia, que pressionam a operação e o poder aquisitivo de seu público.

Nos últimos anos, a indústria de mídia já vinha acelerando sua transformação com o declínio das vendas de ingressos nas salas de cinema. A Disney, por exemplo, que comprou o estúdio Fox em 2019 por US$ 71,3 bilhões e lançou a sua plataforma no fim daquele mesmo ano. Com o coronavírus, demorou apenas doze meses para trazer seu serviço ao Brasil. Já a Discovery Inc. e a Warner Media concluíram a fusão dos negócios neste início de ano para disputar essa guerra do streaming. 

O caso da Netflix é o mais emblemático porque trouxe uma reviravolta para os investidores e aponta para um futuro mais difícil do que o esperado para esse mercado. Em primeiro lugar, mesmo em se tratando da maior operação hoje, com 222 milhões de usuários no mundo, o declínio na base da plataforma foi algo repentino. A Amazon Prime Video e a Disney+ tomam o segundo e terceiro lugar no setor, com 200 milhões e 197 milhões de assinantes, respectivamente. 

Para Barry Diller, executivo de mídia famoso por ter criado a Fox, o recado está dado: muitos investidores finalmente se deram conta que “árvores não crescem até os céus”, disse em entrevista ao jornal “The New York Times”. E o baque foi grande. O bilionário Bill Ackman se desfez de sua participação na Netflix um dia após a surpresa negativa da apresentação ao mercado. As ações da empresa californiana derreteram desde a divulgação dos resultados e acumulam perdas de mais de 42% na última semana, sendo negociadas na bolsa US$ 200 nesta terça-feira (26).

Mas para o analista internacional Cesar Crivelli, sócio e responsável pela cobertura do ativo na Nord Research, não há motivos para pânico. A corretora trabalha com ações da Netflix na Nord Global e na Nord BDR há algum tempo e estuda aumentar a participação da companhia em ambas as carteiras.

“Mesmo com o resultado mais fraco que o esperado e com um 2022 desafiador pela frente, não mudamos nossa visão de longo prazo para a empresa”, disse em entrevista ao BP Money. 

Para Crivelli, a desaceleração se deve apenas a fatores macroeconômicos, que afetam os serviços discricionários no primeiro momento. “Não há erros de gestão na Netflix. Pelo contrário, vemos a empresa seguir um caminho que consideramos bem acertado”, explicou o analista, que reforçou a recomendação de compra das ações fora e de BDRs, os certificados de depósito emitidos e negociados no Brasil que representam ações de empresas listadas em bolsas de outros países. 
 
Para a equipe da Nord Research, é tudo uma questão de olhar além do curto prazo. A expectativa para 2023 é que a empresa já consiga retomar o crescimento. 
 
Segundo as projeções do mercado, as vendas da Netflix devem saltar 10% no próximo ano, com uma receita impulsionada pelo aumento de preços e do número de assinantes. Já o lucro da operação em 2023 deve subir 15% em relação aos US$ 6 bilhões esperados para este ano – em linha com o patamar alcançado no ano anterior.

Essa perspectiva, segundo Crivelli, indica a retomada da margem a patamares saudáveis. “O aumento da receita virá com o reajuste dos preços, o que a plataforma vem fazendo desde o segundo semestre do ano passado”, afirmou o analista. 

Desde que a inflação passou a pressionar os custos da operação, que aumentaram 13,3% na base anual dado o aumento dos salários nos EUA e das locações de estúdios, a Netflix começou a rever seus preços em todo o mundo.

No Brasil, o reajuste chegou a 22%. Desde julho passado, as assinaturas no País variam entre R$ 25,90 e R$ 55,90. Nos Estados Unidos e no Canadá, onde a plataforma perdeu cerca de 600 mil assinantes no quatro trimestre de 2021, as os preços ficam entre US$ 9,99 e US$ 19,99, este último para a assinatura premium.
 
Netflix enfrenta mais concorrência e agora quer combater o compartilhamento de senhas
O recuo líquido de 200 mil assinantes na base da Netflix entre janeiro e março deste ano não é exatamente o ponto de preocupação do mercado. Isso porque, somente com a interrupção dos serviços da plataforma na Rússia, a empresa perdeu 700 mil usuários. Ou seja, excluindo esse efeito – uma retaliação ao conflito iniciado em fevereiro no leste europeu -, o saldo do primeiro trimestre teria sido uma adição de 500 mil pagantes. E este número é que se torna um problema para investidores.
 
A expectativa do mercado, dado o guidance do último período, era uma alta de 2,5 milhões de assinantes na plataforma. Na prática, a performance da empresa veio 80% abaixo do que era esperado para os primeiros três meses do ano. Somado a isso, a estimativa de perder mais 2 milhões de assinantes no segundo trimestre – sendo que, antes, a projeção era de adicionar 1,1 milhão de novos assinantes entre abril e junho – provam que os ventos mudaram no mercado. 
 
Outro ponto de atenção para os analistas da XP é o esforço que a empresa precisa fazer para continuar ganhando participação no mercado e se tornar mais competitiva. “A Netflix aumentou seus gastos com conteúdo”, apontou a equipe em relatório ao mercado. A piora do cenário de inflação, especialmente nos EUA, onde o índice bateu o maior patamar dos últimos 40 anos, elevou os custos de produção de conteúdo, o que deve corroer as margens em 2022. 

Mas a Netflix enfrenta outros dois grandes desafios: um desvio do potencial de assinantes e o aumento da concorrência. A estimativa oficial da empresa é de que cerca de 100 milhões de domicílios no mundo tenham acesso ao conteúdo da plataforma “de forma indevida”. É o famoso compartilhamento de senhas, prática que a companhia passou a combater mais fortemente no último ano.

A arma em que a Netflix está trabalhando para lidar com esse problema é o lançamento de um serviço que incluiria anúncios. O pacote, segundo executivos da empresa, deve chegar ao mercado no próximo ano.

“A Netflix tende a ser a mais cara das opções de streaming, enquanto as outras plataformas conseguem cobrar mais barato por investirem menos em conteúdo”, disse Crivelli.

O baque dos resultados transpareceu na postura dos executivos da Netflix durante a call de apresentação ao mercado na última terça-feira (19). Fundador e CEO da empresa, Reed Hastings, que sempre descartou a possibilidade de implementar anúncios na plataforma, precisou rever a decisão para se adaptar ao bolso do consumidor. Além disso, o compartilhamento de senhas não era um problema para a companhia até pouco tempo atrás e virou um de seus maiores focos agora.

A empresa ainda teme o avanço de concorrentes como HBO Max e Hulu , que já trabalham com pacotes mais acessíveis por incluírem anúncios. As rivais vêm ganhando mercado em ritmo acelerado, com um catálogo que passou a roubar não só audiência como também espaço nas premiações.

O trunfo da Netflix nesta frente são as consolidadas operações locais e os robustos investimentos em conteúdos regionais. “É uma estratégia com muito potencial de gerar identificação no assinante e em que os outros players estão bem atrasados”, avaliou o analista da Nord Research. Para ele, a aposta já trouxe frutos à operação.

A Ásia é a principal vertente de crescimento da Netflix nos próximos anos e já é responsável por alguns de seus maiores sucessos, caso da série sul-coreana “Round 6”, que bateu recorde de audiência na plataforma. Para Crivelli, as super produções hollywoodianas são necessárias, mas não suficientes para sustentar o sucesso do serviço de streaming no longo prazo. 

Negócios concorrentes ou complementares? Mercado pode se reacomodar após a crise

Com a superação do cenário de crise, o mercado aposta em uma futura reacomodação do setor. Segundo especialistas, as plataformas de streaming funcionam mais como serviços complementares do que concorrentes.

Com a melhora dos patamares de renda e o retorno a “condições econômicas normais”, de acordo com relatório da Nord Research, a tendência é que o consumidor possa voltar a assinar mais plataformas. O declínio da penetração da TV a cabo em domicílios no mundo todo favorece esta tese, com o streaming passando a fazer frente às empresas de mídia mais tradicionais em vez de brigar entre si. 

Até lá, a Netflix terá pelo menos mais dois anos difíceis pela frente. Além da pressão por resultados mais expressivos e por margens melhores, a companhia aguarda com apreensão a escalada das plataformas que hoje operam como suas rivais, disputando uma fatia do público pagante. No dia 11 de maio, a Disney divulgará os números de assinantes da sua plataforma, com um catálogo que inclui filmes de sucesso como os da Marvel e da DC. Dependendo do que for apresentado, as tensões podem escalar a níveis inéditos nesse mercado.