
Você acorda com um iPhone e confere mensagens no WhatsApp. Toma banho com shampoo Head & Shoulders e sabonete Dove.
Vai para o trabalho de Uber, em um carro da Volkswagen ou Chevrolet (nunca de Gurgel), entra no escritório, sobe no elevador da Atlas Schindler, abre seu computador Dell ou Lenovo, acessa o Windows, pesquisa no Google, usa o ChatGPT, almoça no McDonald’s com uma Coca-Cola e, no fim do dia, toma uma dose de Mounjaro.
Nada disso parece distante da nossa rotina. Ainda assim, há um detalhe que passa despercebido: nenhuma dessas marcas é brasileira. Na prática, nossa vida já é parcialmente dolarizada. A pergunta que fica é direta e incômoda: quanto do nosso patrimônio acompanha essa realidade?
Dolarização do consumo no Brasil: um fenômeno invisível
No fim de 2024, a Fundação Getulio Vargas (FGV) publicou o estudo “Impacto Cambial no Consumo dos Brasileiros e a Necessidade de Diversificação Internacional”. A pesquisa se propôs a medir algo que muitos sentem no bolso, mas poucos quantificam: o peso do dólar no dia a dia das famílias brasileiras.
Além disso, o resultado ajuda a traduzir o impacto do câmbio em algo concreto. O dólar não afeta apenas viagens internacionais ou compras pontuais. Ele está presente em itens básicos, serviços e decisões cotidianas.
Viés doméstico: por que o brasileiro investe pouco fora do País
O estudo parte de um comportamento recorrente em diversos países, mas especialmente forte no Brasil: o viés doméstico nos investimentos. Em termos simples, trata-se da tendência de concentrar quase todo o patrimônio no próprio país.
No caso brasileiro, esse número chama atenção. Cerca de 97,5% do patrimônio das famílias permanece alocado no mercado doméstico. Isso acontece mesmo em um cenário em que a diversificação é amplamente reconhecida como uma das estratégias mais eficientes para redução de risco.
Não à toa, a diversificação internacional costuma ser chamada de “o último almoço grátis” dos investimentos: ela permite reduzir volatilidade sem, necessariamente, sacrificar retorno.
Dessa forma, esse conceito foi formulado por Harry Markowitz ainda na década de 1950 e, mais de 70 anos depois, continua atual.
Balança comercial e câmbio: exportamos commodities, importamos valor
Outro ponto central do estudo está na análise da balança comercial brasileira. Historicamente, o Brasil mantém saldo positivo entre exportações e importações. Porém, a composição dessa troca revela um desequilíbrio relevante.
Mais de 90% das exportações brasileiras são matérias-primas, enquanto cerca de 90% das importações são produtos de alto valor agregado, ligados à chamada indústria da transformação. Em termos práticos, é como se o País exportasse café e importasse máquinas da Nespresso.
Esse descompasso amplia a sensibilidade do consumo ao câmbio. Setores como eletrônicos, medicamentos, veículos, autopeças, vestuário e alimentos estão entre os mais impactados pela variação do dólar — alguns de forma explícita, outros nem tanto.
Inflação, dólar e consumo: o impacto real no bolso
Para medir esse efeito, o estudo cruzou dados de inflação por faixa de renda, com base em números do Ipea, e aplicou uma metodologia conhecida como análise de estilo. O objetivo foi identificar quanto do consumo das famílias brasileiras sofre influência direta do câmbio.
A conclusão é clara: entre 16% e 18% do consumo cotidiano no Brasil é impactado pelo dólar.
Esse número representa uma média. Sendo assim, famílias que viajam com mais frequência, consomem produtos importados ou têm filhos estudando no exterior tendem a sentir um impacto ainda maior.
Um exemplo simples ajuda a ilustrar esse efeito. Procedimentos médicos e odontológicos que utilizam insumos importados, por exemplo, tendem a refletir rapidamente a variação cambial nos preços. Mesmo itens que parecem distantes do mercado internacional acabam sendo afetados.
Diversificação internacional: quanto faz sentido investir fora do Brasil?
Diante desse cenário, a diversificação internacional deixa de ser apenas uma estratégia sofisticada e passa a cumprir um papel defensivo. Se ao menos 16% dos gastos das famílias estão atrelados ao dólar, faz sentido considerar uma parcela semelhante dos investimentos fora do Brasil.
A lógica é simples: alinhar o patrimônio à realidade do consumo. Investir apenas em ativos domésticos, enquanto uma parte relevante da vida já é dolarizada, cria um descompasso entre renda, gastos e proteção patrimonial.
Em suma, mais do que buscar retorno, a diversificação internacional funciona como um mecanismo de equilíbrio. Portanto, ela ajuda a reduzir riscos, suavizar impactos cambiais e tornar o patrimônio mais aderente à economia real em que vivemos.